Aziz Nacib Ab'Sáber
(1924)
Entrevista concedida a Carmen Weingrill e Vera Rita da Costa*
"Aziz filho de Nacib;
Nacib da família Ab'Sáber": foi assim, com esse estranho nome
composto, que o escrivão do cartório da bucólica São Luís do Paraitinga, no alto vale do Paraíba
Como é que sua família veio parar no Brasil?
Meu
pai era libanês e veio jovem para o Brasil buscar meu avô, um pequeno
comerciante que estava morando
Onde fez seus primeiros estudos?
Quando
o terceiro dos três primeiros filhos completou seis anos, meu pai mudou-se para
Caçapava (SP), uma cidade com mais infra-estrutura. Lá ele tinha uma lojinha e
continuou fazendo o que a família sabia fazer. Nesse período, pela primeira
vez, recebi uma educação formal. Indo para Caçapava, meu pai nos deu chance de
seguir uma carreira. Fiz o curso primário no Grupo Escolar Rui Barbosa e
aprendi a conviver com a competição. Pela primeira vez senti que as pessoas
poderiam ser muito agressivas. Por ter um nome obviamente árabe, eu era chamado
de "turquinho". Antes de entrar para a
escola não havia tomado conhecimento desse tipo de coisa. Fiz o curso
secundário no Ginásio Estadual de Caçapava. Aliás, todas as etapas de minha
educação foram realizadas em escola pública.
Seu pai tinha formação escolar?
Não.
Ele era de uma família que morava numa região de tradição agrícola, a leste de
Beirute, onde toda a família se dedicava a atividades rurais. Meu pai foi o
primeiro a se desgarrar, indo morar
Mas ele se preocupava com a educação dos filhos, não?
O
sonho dele é que os filhos pudessem estudar na França, um ambiente cultural com
o qual seus primos tinham convivido. Quando ele veio para o Brasil, o navio
parou em Gênova, na Itália, e não
Quando
é que o senhor decidiu ir para a universidade?
Foi
durante o curso secundário, influenciado por professores formados na primeira
fase da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Alguns deles foram
dar aula em Caçapava e eu pude sentir a diferença entre a formação desses
professores e a dos mais velhos. Percebi a importância de uma boa formação,
sobretudo na pessoa de um professor de história que estimo até hoje. Ele se
chamava Hilton Friedericci, e ensinava uma história
muito ligada à geografia humana, relacionada ao ambiente onde se desenvolviam
os processos históricos. Em compensação, os professores de física, química e
matemática não tinham boa formação ou não tinham didática.
Os professores de história natural eram melhores. Gostava de física, apesar de
considerar minha formação muito ruim. Parti então para o que eu gostava mais:
história e geografia.
Com quantos anos o senhor entrou na faculdade?
Naquele
tempo estava havendo uma mudança no ensino secundário. Eu havia feito apenas
até o quinto ano, mas podia prestar o exame direto, sem fazer o Colégio
Universitário, uma espécie de ponte entre o secundário e a universidade. Eu não
tinha condições de enfrentar um exame cujos concorrentes tinham mais dois anos
de estudos no Colégio Universitário, onde muitos professores eram da própria
universidade ou ex-alunos recém-formados. Mas eu passei, acho que por causa de
desenho, e com isso ganhei dois anos. Entrei na faculdade com 18 anos. Os
exames eram muito difíceis. Para história e geografia, exigiam-se conhecimentos
de história antiga e medieval, história contemporânea, história do Brasil,
geografia do Brasil, geografia humana, geografia física, elementos de
sociologia e desenho. Me saí mais ou menos bem em
algumas dessas matérias. Não tinha conhecimento suficiente para ir bem em todas. Eu não viajava, estava circunscrito à área
do Vale do Paraíba. Conhecia apenas Caçapava, Guaratinguetá e São Paulo. Fiz
também uma viagem a Santos, quando vi o mar pela segunda vez. A primeira foi
quando nos mudamos de São Luís do Paraitinga para
Caçapava. Meu pai arrumou para descermos até Ubatuba, em despedida a São Luís.
Era um período diferente. A serra, se descia a cavalo.
Os meninos iam em jacas. Como eu era mais pesado do
que meus dois irmãos, meu pai compensava a diferença de pesos com uma pedra. E
chuva em cima até o fim da viagem! A estradinha era no meio da mata, um resto de
estrada colonial em que se ia do planalto até o mar.
O senhor disse ter passado no exame por causa de desenho. O
senhor tem habilidade nessa área?
Tenho.
Ainda faço maquetes de relevo, blocos, diagramas. Mas não sou desenhista, sou
apenas um esboçador de desenhos.
Parece que estudar é a coisa que o senhor sempre mais gostou de
fazer, não?
Sim,
eu não tinha outro objetivo na vida. Vim para São Paulo em 1940, sem ter feito
o serviço militar. Mas tive que fazê-lo logo depois da preparação para os exames
e entrei numa fase dura de treinamento. Pouco depois, em 41, tive uma infecção
muito complicada. Se a minha família não tivesse vindo para São Paulo, eu teria
morrido. Meus pais haviam perdido praticamente tudo antes de se mudarem, e o
começo da vida da gente aqui foi um drama. Sou um sobrevivente desse tempo. Eu
estava no primeiro ano da faculdade e fazia os primeiros meses do exército. Meu
pessoal se instalou num bairro proletário, o Tatuapé, o único que meu pai
conhecia. Foi um período muito difícil.
Não lhe parecia contraditório dedicar-se aos estudos quando havia
tantas dificuldades financeiras na família?
Tive
muitos problemas psicológicos por causa disso. Mas me dedicava profundamente
aos estudos, pois sabia que a solução de muitos problemas da família dependia
de mim. Eu adorava a universidade. Os primeiros cursos que fiz foram de
altíssimo nível. Na área de humanas, estavam aqui os professores da missão
francesa: Jean Gagé, de história, Pierre Monbeig, de geografia, entre outros. Brasileiro, havia o
professor Aroldo de Azevedo, com quem mantive permanente contato. Cheguei a ser
seu assistente e fiz toda minha carreira na disciplina de geografia do Brasil.
Mas confesso que naquela época eu gostava mais de história. Ficava deslumbrado
com as aulas de Jean Gagé. Ele era um medievalista
famoso na Europa que veio para o Brasil como chefe da missão francesa em
ciências humanas, substituindo Fernand Braudel. Braudel ficou pouco tempo; não tive a honra de acompanhar
seus cursos. Só mais tarde é que assisti a algumas de suas conferências.
Mas foi à geografia que o senhor se dedicou. Qual a razão dessa
escolha?
O
preço dos livros de história e das assinaturas das revistas especializadas era um
empecilho. Nas primeiras excursões ao campo, descobri que na geografia eu podia
ler a paisagem e não precisava de livros. E também não havia bibliografia para
os trabalhos que deveríamos fazer. Bastava ter saúde e boa vontade. Comecei
então a ir ao campo e a fazer pequenas viagens. Como eu não tinha máquina
fotográfica, aprendi a desenhar as paisagens que via.
Foi como estudante que o senhor começou a produzir cientificamente?
O primeiro trabalho de campo que
fiz, sem orientação, foi sobre a geomorfologia da região do Jaraguá e
arredores. Partindo de trem da Estação da Luz,
Como assim?
Naquele
tempo, nem todos os professores eram pesquisadores natos. Quando iam ao campo,
era para fazer uma mise-en-scène, pois não tinham muita capacidade de
observação. Estudava-se a geografia da paisagem: a geometria das formas e a
utilização humana do espaço. Ainda não se tinha qualquer senso ecológico. Em
minhas excursões procurei examinar as paisagens como um todo, mas logo me
especializei
Quais foram suas primeiras atividades depois de formado?
Entre
1944 — quando obtive o título de bacharel e me licenciei em geografia e
história - e 1965, tentei conhecer o Brasil, pois não
tinha dinheiro para viagens mais longas e não havia auxílio de nenhum tipo.
Tive a sorte de me filiar à Associação dos Geógrafos Brasileiros, que se reunia
uma vez por ano em pontos diversos do Brasil. A sociedade não se reunia em
capitais, só em pequenas cidades e, durante essas reuniões, a gente aproveitava
para fazer pesquisa de campo nos arredores. A sociedade foi fundamental na
minha vida, porque, além de ter me permitido conhecer o Brasil, ainda me
possibilitou publicar, em seu boletim, pequenas notas sobre as áreas que
percorria.
A sociedade custeava suas despesas?
Custeava,
porque eu era um aluno sem recursos. Muito cedo me tornei membro da diretoria
e, quando o Boletim Paulista de Geografia foi criado, o professor Aroldo
me convidou para participar de seu conselho editorial. Assim, pude compensar a
falta de dinheiro. Eu não costumava freqüentar as rodas dos bares e
restaurantes porque não podia dividir as despesas. Mas tive muita sorte com
meus colegas. Um dia, o Miguel Costa Júnior sugeriu que fizéssemos um pool entre
nós para conhecer um lugar distante. Com pouco dinheiro e com a ajuda da
Fundação Brasil Central, fomos - o professor Pasquale Petrone,
o Miguel Costa Júnior e eu - a Uberlândia. Lá, descobrimos um cidadão que
estava levando mercadorias para a cidade de Aragarças
(GO). O núcleo de Aragarças estava sendo construído
pela Fundação Brasil Central na margem direita do rio Araguaia, em frente a uma
cidadezinha muito pobre, que era Barra do Garças. Essa
viagem foi fundamental na minha carreira, porque eu saí de uma região de
morros, onde havia passado a infância e fui parar no Brasil Central, com
chapadões intermináveis, cerrados e florestas de galeria. Pela primeira vez eu
senti a diferença entre os domínios morfoclimáticos do Brasil. Comecei então a
ler os trabalhos de viajantes como Saint-Hillaire e
fiquei muito fixado no Brasil Central. Escrevi um longo trabalho sobre o
sudoeste de Goiás, junto com o Miguel Costa Júnior. O trabalho, Contribuição
para o estudo do sudoeste de Goiás, está publicado nos anais da Associação
dos Geógrafos Brasileiros.
Este foi seu primeiro trabalho?
Foi
o meu primeiro trabalho de fôlego. Antes eu havia escrito sobre a geomorfologia
do Jaraguá e suas vizinhanças. Todo o meu trabalho posterior decorreu dessa
viagem ao Brasil Central e de uma outra que fiz mais
tarde, pela Associação, ao Nordeste. Nessa segunda viagem, quando desci de
Campina Grande (PB), após transpor o Planalto da Borborema, para a região de
Patos (PB), vi pela primeira vez uma serra seca, cheia de cristas elaboradas em
estruturas quartziticas mergulhantes.
A partir da ponta dessa serra, entrei pela primeira vez no alto sertão, que é
baixo, ondulado, com caatingas extensivas, rios intermitentes e uns morrotes bizarros, do tipo dos pães-de-açúcar,
porém designados inselbergs pelos
condicionantes semi-áridos do seu entorno. Compreendi imediatamente que estava
diante do terceiro domínio da natureza brasileira. Durante muitos anos me
dediquei a entender até onde iam aquelas depressões interplanálticas
com montanhas e caatingas, solos de regiões secas, homens e sociedade sertaneja
projetados pelo mundo da caatinga. A esse respeito, publiquei
Quantos anos o senhor tinha quando fez esta primeira viagem?
A
viagem para o sudoeste de Goiás foi em 1946, quando eu tinha 22 anos. A viagem
ao Nordeste aconteceu mais tarde, em 1951 ou 1952. Na primeira fase de minha
carreira, procurei entender a compartimentalização
topográfica do Brasil. Já havia percebido três domínios integrados de natureza
- o que hoje chamaríamos de domínios morfoclimáticos e fitogeográficos — e três
domínios de geografia humana, com relações homem-ambiente muito rústicas e
sofridas. Meu objetivo era entender a topografia geral do país, pois os mapas
daquele tempo nada diziam. Falava-se do Espigão Mestre e a gente não sabia se se tratava de uma crista ou de um platô divisor. Adiante
dessa região, que fica entre o Vale do São Francisco e a atual região de
Brasília, havia o desconhecido. Sabia-se menos ainda sobre o espaço que se
estendia entre essa região e a periferia da Amazônia. Eu me dedicava dia e
noite a entender como era a compartimentação topográfica geral do Brasil, esse
complexo sistema que envolve partes altas (montanhas, platôs) e rebaixamentos
(depressões interplanáticas e sistemas de colinas e
terraços). Essa foi a minha primeira preocupação, que deu substância à minha
forma de perceber os espaços físicos e ecológicos.
O senhor tinha idéia de onde iria chegar com seus estudos?
Em
1956, estabeleci um roteiro de estudo de geomorfologia. Propus-me inicialmente
a entender a compartimentalização e as formas que
assumem os compartimentos, aquilo que se vê. Como geógrafo, eu tinha que ter
olhos. E isso me foi ensinado, desde a primeira hora,
pelos mestres franceses. Portanto, procurei desenvolver essa percepção, pois
sem isso é impossível ser geógrafo. A partir de 1956 - por
influência dos grandes geomorfologistas e geólogos do
quaternário que vieram ao Brasil participar do XVIII Congresso Internacional
de Geografia, realizado no Rio de Janeiro — comecei a me interessar pela estrutura
superficial da paisagem, ou seja, passei a interpretá-la como documento do
passado recente, da história física e ecológica da Terra. Foi aí que me
aproximei da ecologia e da geoecologia. Passei a me interessar sobretudo pela fisiologia da paisagem, por aquilo que
depende do clima. Queria ter uma noção dinâmica da fisiologia da paisagem, que
integrasse todos os seus componentes: águas caindo, rochas se decompondo, solos
se formando, enfim uma cadeia sutil de eventos. Fixei um tripé de estudos: compartimentalização e formas; estrutura superficial da
paisagem; e dinâmica ou fisiologia da paisagem.
Como o senhor chegou à teoria dos refúgios?
Essa
história começou quando entrei em contato com os grandes geógrafos alemães,
belgas, franceses, poloneses e russos que vieram ao Congresso Internacional de
Geografia realizado aqui no Brasil em 1956. De repente chegou ao Brasil um
avião cheio de geógrafos, autores dos livros que eu lia. Foi uma festa! Eles
não entendiam por que até durante o jantar eu procurava estar por perto deles.
Aquela reunião me marcou. Até então eu não tinha tido oportunidade de ir a
Europa e ver de perto o trabalho de geomorfologistas
com formação muito superior a minha. Em 1957, quando Jean Tricart,
um grande geógrafo de campo, voltou ao Brasil, eu o assessorei numa excursão a
Salto, Jundiaí, Sorocaba e Campinas. Um dia paramos perto de um barranco onde
havia uma ocorrência de stone
lines (linhas de pedra) sobre terrenos mais
antigos e, logo abaixo, terrenos cristalinos. Até então as linhas de pedra eram
um enigma para nós brasileiros. Eu sabia da existência de bibliografia sobre
aquelas linhas e sabia também que o que se dizia sobre elas não estava correto.
Mas ninguém sabia explicá-las de outra forma com exatidão. O Tricart me disse então que aquelas linhas de pedra - que
haviam dado tanto trabalho aos geógrafos, cada um interpretando-as a seu modo — na realidade deviam ser um remanescente de um
chão pedregoso do passado. Poderia ser algo parecido — embora não se pudesse
afirmar com certeza - com certas formações de pedras típicas do Nordeste
brasileiro. Aquela área em que estávamos deveria, no passado, ter sido um chão
pedregoso com caatingas ou cerrados, segundo a interpretação arguta de Tricart. Não precisou que ele dissesse mais nada: fiquei
encantado com o que me dizia e me dediquei daí para frente a estudar as linhas
de pedra..
Que relação há entre essas linhas e a teoria dos refúgios?
Já
havia visto linhas de pedra dezenas de vezes no sul do país, mas não tinha
condições de interpretá-las. Com o estímulo de Tricart,
fixei-me na idéia de que as regiões com muitas linhas de pedra próximas umas
das outras já teriam tido uma fisionomia semelhante à do Nordeste seco atual:
com chão pedregoso e com áreas de solo sem pedras mas
igualmente secas. Cheguei a fazer um mapa marcando todas as ocorrências de
linhas de pedra. Depois estabeleci os corredores que deveriam ter sido secos e
comparei com as informações sobre a existência de brejos no Nordeste. Concluí
que todas as áreas onde ocorria chão pedregoso tinham sido na verdade caatingas
— e não cerrados ou cerradinhos — e que as matas recuaram para ambientes iguais
aos dos brejos do Nordeste. Por aproximações sucessivas, cheguei à conclusão de
que muitas áreas tiveram caatingas extensivas e as matas ficaram reduzidas a
pequenas manchas em alguns pontos, que chamei inicialmente de
"redutos". Mais tarde outros adotaram a mesma expressão. Por causa
dessa conclusão, sou considerado um dos autores da chamada teoria dos refúgios.
O "jogo" que imaginei foi o seguinte: no momento em que as caatingas
se expandiram, as florestas recuaram, mas não desapareceram, porque senão não
teriam voltado. Esta foi a minha maior intuição.
Essa hipótese causou alguma reação imediata?
Lancei
essa idéia numa conferência, durante a reunião da Associação dos Geógrafos em
Alagoas, e depois em duas teses, uma de 1965 e outra de 1968. Mas, antes que eu
publicasse minhas hipóteses, muita gente as copiou. Cheguei a tirar satisfação
com uma pessoa e obtive a seguinte resposta: "Mas não está escrito!"
Mas essa pessoa estava nas reuniões em que expus minhas idéias... Minha
desforra é que copiaram a tipologia mas não souberam o
que fazer com ela. O cientista não é um ser totalmente destituído de vaidades;
ele as tem, sobretudo quando é roubado. Os biólogos, em particular, foram
receptivos a essas idéias. Para eles era fundamental conhecer a história da
vegetação brasileira e eu, em parte, lhes contava essa história.
O senhor sempre trabalhou sozinho?
Sim.
Raramente fiz algum trabalho em colaboração, o que muita gente pode interpretar
como egoísmo. Mas não tive outro jeito. Eu me diferenciei de meus colegas por
ter uma certa facilidade para o trabalho de campo.
Evidentemente, aqueles que seguiam uma carreira normal tiveram ciúmes. Quando escrevi
o primeiro trabalho sobre o Jaraguá, meus amigos
queriam publicá-lo numa revista de grêmio, mas alguns professores não
aceitaram. Não porque tivessem críticas ao trabalho, mas porque não estava na
"ordem do dia", porque eles não podiam avaliar se eu estava certo ou
não. Com o trabalho sobre Goiás, aconteceu a mesma coisa: com base nas
observações que havia feito, cheguei à conclusão de que a bacia do Paraná era
um belo exemplo de cuestas concêntricas
de frente externa, como era exemplificado no livro de Emmanuel De Martonne. Fiz então um longo trabalho de interpretação e o
apresentei
A que o senhor atribui essa atitude?
Todos
competiam para emergir. Alguns até já tinham emergido por força de seu próprio vigor intelectual, outros por seus padrinhos.
Como foi que o senhor entrou para o quadro de docentes da
universidade?
Quando
eu estava para terminar a pós-graduação, meu amigo Miguel Costa Júnior foi até
o professor Kennech Kaster,
que ensinava geologia histórica, e me fez um elogio que eu não merecia. O Kaster disse que já havia reparado em mim e pediu que eu
fosse falar com ele. Quando soube disso, sumi. Ia na
aula e saía antes de terminar só para não falar com ele. Eu não tinha jeito,
como ainda não tenho, para pedir as coisas. Um dia na aula, ele botou a mão no
meu ombro e disse para procurá-lo depois do exame. Aí não houve como fugir. Ele
propôs que eu fosse contratado como assistente sênior. Mas, como não havia
vaga, fui contratado como funcionário. Os outros eram uma
espécie de professores associados. Como a situação em casa era difícil e
eu não conseguia aulas no curso secundário, resolvi aceitar. Depois que fui
"nomeado" na universidade, passei a tomar conta da biblioteca e a assistir
às aulas do professor Kaster. O ambiente era
extremamente competitivo. Havia os sem-caráter, que felizmente não fizeram carreira. O começo foi muito difícil, mas, apesar
das dificuldades, a universidade tem suas compensações. Passei a ser
"prático de laboratório" até fazer o doutorado e a livre-docência. Só
depois de me tornar livre-docente é que deixei de ser funcionário. Como professor independente, não tive muito tempo para orientar
teses e formar um grupo de trabalho. Não tive orientador, pois naquela época
prevalecia o sistema de especialização. Nos anos de 1959 e 1960 estive
O senhor esteve também
Já
quase no fim da minha carreira na USP, fui diretor do Instituto de Biociências
e Ciências Exatas da UNESP
O senhor pode dar um exemplo?
A
floresta de babaçu, entre a Amazônia e o Nordeste seco, ou a mata do cipó,
entre a caatinga e a "mata fria", na Bahia. Esse foi meu principal
trabalho, o que me lançou perante a comunidade biogeográfica. Até então os
biólogos não tinham uma boa noção de espaços geológicos aplicada ao Brasil como
um todo. Depois cruzei esses dados com os que tinha
obtido sobre as ocorrências de linhas de pedra e encontrei evidências de que
algumas dessas áreas tiveram, no período quaternário, caatingas e cerrados. Aí
pude afirmar que o quadro da vegetação encontrado pelos colonizadores — matas atlânticas, cerrado, caatingas, mata amazônica,
araucária, pradaria — não era o mesmo que existiu anteriormente, em tempos subatuais ou em alguns momentos do Pleistoceno superior. O
arranjo que havia no passado era radicalmente outro, em decorrência de um
episódio de fragmentação da tropicalidade.
Quando é que esse trabalho foi feito?
As
pesquisas foram feitas entre 1958 e 1968. Mas continuo ainda hoje a elaborar
esse trabalho e preciso escrever minhas conclusões mais recentes. Descobri, por
exemplo, linhas de pedra espessas e contínuas na região do vale do rio
Cristalino, a oeste do rio Araguaia, no sul do Pará, onde a Volkswagen tinha
uma propriedade. Fiquei estarrecido quando as descobri sobre um solo muito raso
e de floresta amazônica periférica. Deduzi, em primeiro lugar, que a Volkswagen
iria fracassar no empreendimento, porque, quando fosse plantar naquele solo, as
pedras poderiam ficar expostas. Em segundo lugar, deduzi que a área florestada
resultou de uma floresta que recobriu, ao longo de poucos milênios, uma área
que havia sido de caatinga. A caatinga foi expulsa, dando lugar a mata. Atualmente estou repensando essas idéias e tenho
chegado a conclusões novas. Descobri linhas de pedra nos campos do Amapá que
documentam que, no passado, eles devem ter sido caatingas, e que as linhas de
pedra não são muito contínuas porque predomina o solo arenoso. Quando não há
matriz resistente na pedra, é impossível a formação de chão pedregoso; forma-se
um solo arenoso e um campestre de caatinga, que no Nordeste é chamado de
"arisco", palavra que deriva da forma portuguesa antiga "areusco". São faces diferentes da caatinga. Os campos de Boa Vista, por exemplo, foram areuscos no passado. Ainda estou elaborando o significado
do pedregal do vale do rio Cristalino em relação ao
recuo das matas amazônicas para os refúgios.
A
idéia que estou tendo é de que havia caatinga na região de Brasília e nessa
área do Araguaia; cerrados e algumas manchas centrais de matas, ao longo da
faixa equatorial. Os refúgios periféricos estariam nas frentes úmidas de
chapadões, na borda dos platôs e nas vertentes médias dos Andes, até onde as
brisas úmidas atlânticas pudessem alcançar. A conclusão me parece bastante
verossímil. Se no sul do Pará — entre a serra de Gradaús
e os chapadões do Maranhão, a leste do rio Tocantins - há cargas de material detrítico, constituído por linhas de pedra muito
superficiais, é fácil deduzir que essa região foi mais seca no passado recente,
aproximadamente entre 20 mil e 13 mil anos. E, se isso é verdade, os fragmentos
de mata amazônica, que estavam muito recuados ou refugiados nas encostas
úmidas, mais tarde serviriam como bancos genéticos para a reconstrução do
grande contínuo florestal amazônico.
Qual a importância imediata dessas conclusões?
Do
ponto de vista ambiental, isso mostra que o quadro encontrado pelos
colonizadores, formado nos últimos 12 mil anos, se deu a partir dos refúgios.
Foi a biodiversidade dos refúgios que fez com que — na
medida em que o clima foi se tornando mais úmido na Amazônia e no Brasil
tropical atlântico - as ilhas de umidade fossem se emendando e se aglutinando
no espaço total da Amazônia e ao longo da faixa atlântica brasileira. Por isso
defendo a implantação de grandes reservas de biodiversidade não só para o
futuro da vida no território brasileiro, mas também para preservar mundialmente
a biodiversidade. Isso por consciência própria, sem atendimento a pressões
internacionais. Acho que é a partir dessa consciência que vão surgir novas
propostas para a preservação da biodiversidade na Amazônia. O conhecimento das
linhas de pedra por sua vez tem importância para prevenir impactos relacionados
a escarificação ou sulcagem
dos solos onde ocorrem.
O que há de peculiar no seu trabalho de geógrafo?
Na
realidade, fui um grande viajante e um aprendiz de geógrafo. No início viajava
para conhecer um pouco de tudo e, depois, já como geógrafo, para detalhar o
conhecimento. No começo queria ter uma macrovisão do
Brasil, mas, ao perceber que parte do passado recente estava na estrutura
superficial da paisagem, tive que descer e olhar para os barrancos, atuando
como geólogo de superfície. Eu ficava encantado, em 1956, ao ver os geógrafos
estrangeiros interessando-se apenas pelos documentos dos solos superpostos
vistos nos barrancos. Nessa época, geografia para mim era olhar a organização
geral da paisagem e a projeção dos homens. Olhar barrancos era tarefa de
geólogos. A integração que fiz — olhar o barranco e o espaço total — foi muito
saudável e até mais útil para uma visão integrada do mundo físico e ecológico
do que aquilo que aprendi com meus mestres eventuais.
Como foram suas relações com pesquisadores de outras áreas?
Meu
relacionamento com a comunidade científica foi amplo. Os biólogos e os fitogeógrafos se interessaram muito pelas minhas idéias.
Por outro lado, pude usufruir de seus conhecimentos biológicos para recauchutar
minha geografia física, redirecionando-a para uma biogeografia válida. A melhor
colaboração que tive veio do zoólogo Paulo Emílio Vanzolini, em 1970. Ele
descobria espécies novas e sub-conjuntos diferentes de
espécies no universo espacial amazônico, o mesmo que Juergen Haffer estava realizando em 1969 com agrupamentos regionais
diferenciados de pássaros. Quando falei sobre áreas que haviam sido secas no
passado, referindo-me especificamente ao Amapá, ele percebeu a importância
dessas idéias para a zoogeografia.
Chamou-lhe
a atenção sobretudo minha interpretação dos brejos
como redutos de tropicalidade no domínio da caatinga,
observação convergente que não é só minha. Se realmente houve refúgios
distantes entre si durante o tempo em que a vegetação estava recuada, pode ter
havido evolução genética distinta ou diferencial. Teria havido tempo suficiente
para a subespeciação. O "relógio da
evolução" tem funcionado diferentemente em áreas de refúgio muito
separadas entre si. Quando os refúgios começaram a se expandir e se uniram,
passou a haver convivência de associações faunísticas distintas, pois o que
existia em um quadrante não existia necessariamente
Como a questão social entrou na sua vida?
No
início da minha carreira, não tive oportunidade de me dedicar à geografia
humana, pois muito precocemente me tornei um profissional de geografia física.
Mas sempre fiz observações de geografia humana, necessárias para entender a
organização real da paisagem e as modificações que lhe eram impostas pelo
homem. Numa viagem que fiz quando jovem, percebi que os cerrados se
intercalavam com remanescentes de cerradões e que
aqueles eram frutos da degradação que o homem impunha ao cerradão.
Em outros lugares de solos muito ruins, havia cerradinhos ralos no meio de
capins nativos e árvores pequenas e esparsas. É óbvio que
aquilo não era uma obra humana, mas da própria natureza. Com o tempo,
passei então a me fixar nas conseqüências da atividade humana sobre a paisagem.
Hoje, trabalho exatamente nessa linha, com mais experiência.
Como vê as modificações impostas pelo homem na Amazônia?
A
Amazônia como um todo ainda está relativamente preservada. Mas a parte
periférica, próxima ao cerrado, foi muito facilmente devastada. As pessoas
saíam do cerrado e iam penetrando mato adentro,
devassando florestas e fazendo experiências empíricas em solos pobres.
Descobriam minérios e dominavam o espaço por processos cartoriais: muitos
compravam pequenas áreas e as registravam como grandes propriedades. Foi o
caos! Se examinarmos uma imagem de satélite de uma área crítica da Amazônia
ocidental, veremos todos os tipos de supressão de florestas, com enormes
conseqüências negativas para a biodiversidade regional. Examinei uma dessas
imagens e fiz uma análise dos diferentes caminhos da devastação. Há uma estrada
estadual ligando Belém, Marabá e Carajás, ao longo da qual há um processo
contínuo de destruição. Numa distância de dois a cinco quilômetros além das
margens dessa estrada não se vê qualquer sinal de floresta. Há também a
ferrovia Carajás-São Luís — de
Os
outros fatores de degradação estão relacionados com os rios e igarapés. Ao
longo do Braço Grande e Alto Capim, vê-se a devastação nas duas margens. Os
mais pobres fizeram o mesmo ao longo dos igarapés: devastaram, venderam
árvores, tentaram sobreviver. As imagens de satélite também revelam alguns
"linhões" que dão acesso a grandes
propriedades agropecuárias ilhadas no coração da floresta.
E quando surgiu sua preocupação com as populações nordestinas?
Senti
o drama dos sertões já na primeira viagem que fiz ao Nordeste, no início dos
anos 50. Embora tenha demorado a escrever sobre esse problema, ele sempre
esteve presente na minha vida. Como eu me dedicava mais à geomorfologia e
estava interessado em geografia da natureza, guardei minhas observações sobre
as desigualdades sociais, a projeção da pobreza e a ecologia humana dos sertões
para o momento em que pudesse, de fato, me dedicar a elas. Confesso que custei
muito a usar meus conhecimentos científicos como instrumento de pressão
política em favor de posturas melhores para o meu país e sua gente.
O senhor nunca pensou em se candidatar a algum cargo político?
Não
tenho vocação para a política e não quero ser político. Quero apenas colaborar
com as políticas públicas e com os políticos que merecem meu respeito. Depois
que comecei a colaborar com o governo "paralelo" do Partido dos
Trabalhadores, muita gente me confunde com uma espécie de candidato a político.
De modo geral não gosto dos políticos brasileiros, independentemente do partido
a que pertençam. Mas dou meu aval para as exceções e incluo, entre elas, Luís
Inácio da Silva, o Lula, uma das inteligências mais rústicas e criativas do
país. Sou um fiel servidor do governo "paralelo", particularmente
assessorando o Lula. Mas minha participação política limita-se a fazer diagnósticos
de situações e listar boas propostas para o redirecionamento das políticas
públicas.
Que rumo o senhor acha que devem tomar as políticas públicas?
O
regional e o setorial, integrados ao nacional, devem ser valorizados. Se não
houver uma administração mais direta, não haverá solução para um país de
dimensões continentais como o Brasil. A idéia que tenho do espaço brasileiro me
faz pensar na necessidade de um bom método de abordagem e de muitas
estratégias. Não adianta ter noção de espaço se não houver um conjunto de
estratégias que viabilizem o que se julga correto. Mas para isso é preciso o
apoio de todos os grupos. Com o projeto Floram,
desenvolvido no Instituto de Estudos Avançados da USP, tenho tido oportunidade
de pensar nesse tipo de estratégia.
O que é o projeto Floram e como o
empresariado o tem recebido?
Trata-se
de um projeto de reflorestamento diferencial para o Brasil, no sentido de que
cada área requer um tipo específico de reflorestamento. O Nordeste seco, por
exemplo, não pode ser uma área para produzir grandes massas de eucalipto para
papel ou celulose, pois não tem condições climáticas nem hídricas para isso. De
início, retirei do projeto a Amazônia, o Pantanal, o Nordeste seco e todas as
áreas de solos agrícolas rentáveis do país, admitindo a possibilidade de um
aproveitamento parcial de espaços agrários subaproveitados de áreas em geral
mais desenvolvidas.
A
Amazônia ficou de fora porque não tem sentido fazer reflorestamento numa região
onde é preciso conservar o máximo de floresta em pé e descobrir modelos
auto-sustentáveis para sua economia. Ainda assim, grandes áreas devastadas de
sua periferia, como a faixa Carajás-São Luís, foram
incluídas no projeto. O projeto Floram me deu acesso
a áreas que estavam mais ou menos bloqueadas para debates. Os empresários não
vinham a universidade porque a consideravam um antro
da esquerda festiva e temiam que, ao revelar seus projetos, nós os
combatêssemos. Através do projeto Floram, eles
passaram a ter informações que desconheciam e a receber conselhos impensados. Os contatos tem sido muito úteis para associar
desenvolvimento com proteção ecológica. Muitos empresários aprenderam a
respeitar a universidade e a aceitar, em tese, nossas propostas.
Como vê a atividade do cientista num país como o Brasil?
Já
ouvi dos artistas que eles vivem um grande drama porque o produto de seu
trabalho é endereçado à burguesia, que não se preocupa com cultura e compra
quadros apostando na sua valorização com o tempo. Com o cientista é pior! Para
quem trabalha o cientista? Seu cliente é o país, a sociedade. Mas num país
subdesenvolvido e num contexto de governos muito ruins que se sucedem, como é o caso brasileiro, os cientistas não têm
como colocar no mercado o produto da sua atividade: as idéias, as descobertas,
as propostas. Acho dramática a situação dos cientistas no Brasil. Julgo que o
grande problema da ciência é que ela tem que ser permanentemente ética. Acho
ainda que é fundamental para a ciência que as
disciplinas não sejam aplicadas isoladamente. Não posso fazer uma proposta para
a Amazônia com base apenas na geomorfologia da região. Qualquer conjunto de
propostas para a região tem que se basear no conhecimento de toda a realidade:
fatos físicos, ecológicos e sociais. Fatos e contingências políticas.
O senhor é otimista em relação a questão
ambiental no Brasil?
Diante
do quadro de devastação da Amazônia, não sou muito otimista. Há lideranças nos
governos estaduais e empresários de postura imperial que defendem o modelo de
ocupação dominante: devastação, multiplicação de estradas para valorização de
suas glebas, expulsão de sem-terras, sem falar no fomento ao garimpo visando
lucros e propiciando o contrabando de ouro e cassiterita. Alguns acham que se
as florestas dos outros países já foram destruídas, por que não podemos fazer o
que quisermos com a nossa? Pretende-se a total liberdade para qualquer tipo de
supressão de florestas. Por outro lado, governadores e seus prepostos dão o seu
aval à filosofia da devastação. Uma tristeza nacional! E no Acre até os juizes
tentam absolver os assassinos de Chico Mendes. Nessas circunstâncias,
cumpre-nos apenas lutar por boas idéias e propostas, ainda que não se possa
acreditar em quase ninguém
*
FONTE: Publicada
na Ciência Hoje, em julho de 1992.