O capitalismo da catástrofe*
A luta entre o Carnaval e a Quaresma, Pieter Brueghel, 1559.
Depois do Iraque, o grande negócio da
reconstrução entra em ação
A fúria implacável do Katrina atingiu
todos os cantos, deixando na sua passagem uma devastação digna de Hiroshima
O furacão que destruiu Nova
Orleans é produto de uma grande perturbação atmosférica que aconteceu no dia 23
de agosto, a 200 km das Bahamas. Mas, ao passar pelo golfo do México durante
quatro dias, “a tempestade tropical Katrina” se transformou em um verdadeiro
monstro. Absorvendo a vasta quantidade de energia acumulada pelas águas do
golfo, extraordinariamente quentes – três graus centígrados acima do nível
normal para o mês de agosto –, ela se transforma em um furacão de categoria
cinco, com ventos de 290 km por hora, engendrando uma gigantesca onda de tempestade
de 10 metros de altura.
A quantidade de calor concentrada
pelo Katrina foi tal que, “depois de sua passagem, em certas zonas do Golfo, a
temperatura caiu brutalmente passando de 30 para 26 graus” 1 .
Horrorizados, os meteorologistas
admitem ter raramente observado tal aumento de força em um furacão caribenho. E
saber se o crescimento explosivo do Katrina é um indicador do efeito do
aquecimento climático do planeta sobre a intensidade dos ciclones provoca um
grande debate entre os pesquisadores.
Quando chega ao litoral, na manhã
de segunda feira de 29 de agosto, em Plaquemines, na Louisiana, no delta do
Mississipi, o Katrina já passara para a categoria quatro (ventos de 210 a 249
km/hora). Era apenas um pequeno consolo para os habitantes dos portos
petrolíferos, pequenos povoados e vilas de pescadores francófonos que tiveram a
infelicidade de estar no caminho do furacão. Em Plaquemines e ao longo de todo
o litoral do Mississipi e do Alabama, a fúria implacável do Katrina atinge
todos os cantos, deixando na sua passagem uma devastação digna de Hiroshima.
Os diques destruídos
eram claramente insuficientes para proteger os bairros mais pobres ;
Proteção
de papel
Inicialmente, Nova Orleans e seus
1,3 milhão de habitantes supostamente estariam protegidos. Porém, a trajetória
do furacão desviou para a direita e seu centro se deslocou para 55 km à leste
da cidade. Embora poupada por rajadas de vento mais violentas, a capital da
Louisiana – que se encontra abaixo do nível do mar, bordejada por duas grandes lagunas
de água salgada, o Lago Ponchartrain ao norte e o lago Borgne ao leste –
sucumbiu à fúria das águas.
É destes dois lagos que a onda de
tempestade impulsionada pelo furacão rompeu os diques claramente insuficientes
– e menos elevados que os dos bairros ricos – que supostamente protegeriam os
bairros majoritariamente negros e o leste da cidade e o subúrbio operário
branco adjacente a Saint Bernard. Na ausência de alerta oficial, a subida das
águas se transformou em uma armadilha mortal para centenas de habitantes
surpreendidos quando dormiam. Próximo ao meio-dia, um dique claramente mais
resistente da zona do canal da Rue 17 também cedeu.
A inundação poupou as zonas
turísticas como o Vieux Carré e o Garden District e também certos bairros mais
ricos como Audubon Park, construído em um plano mais alto. Mas, por todos os
lados, o dilúvio chegou ao nível dos tetos, afetando ou destruindo cerca de 150
mil unidades de habitação. A cidade recebeu então o apelido de “Lago George” em
homenagem irônica ao presidente que tinha se revelado totalmente incapaz de
auxiliar os habitantes quanto de assegurar a construção de novos diques.
Não há nenhum aspecto
da catástrofe que não tenha sido marcado pelas desigualdades de classe e de
raça
Marcas de classe e raça
Mesmo depois de ter aventado a
possibilidade de que a “tempestade não foi discriminatória”, até mesmo George
W.Bush acabou admitindo: não há nenhum aspecto da catástrofe que não tenha sido
marcado pelas desigualdades de classe e de raça. O furacão não só pôs a nu as
promessa enganosas do Ministério da segurança interior, encarregado de proteger
todos os americanos, bem como expôs de forma retumbante as conseqüências
devastadoras do abandono no qual são deixadas pelo governo federal as grandes
metrópoles com maioria negra e hispânica e suas infra-estruturas vitais.
Quanto à incrível incompetência
da Agência federal de gestão das urgências, a Federal Emergency Management
Agency (FEMA), ela demonstra o absurdo de confiar cargos de responsabilidade
pública tão vitais aos cortesãos políticos ineptos e cegos por sua hostilidade
ideológica à intervenção do Estado. Quando pensamos nos prodígios de lerdeza
burocrática manifestados pela FEMA, só podemos nos admirar com a rapidez com a
qual Washington agiu para suspender as normas salariais em vigor, em virtude do
Davis-Bacon Act 2, e abrir
as portas de Nova Orleans, para a reconstrução e a “segurança”, aos predadores
de colarinho branco de sociedades como a Halliburton, o Shaw Group e Blackwater
Security, mantendo exatamente os mesmos lucros fáceis acumulados sobre os rios
do Tigre.
Se a agonia de Nova Orleans se
deve, amplamente, à incúria das autoridades federais, o governador do Estado e
a Prefeitura da cidade têm, também, sua responsabilidade. É o prefeito
(democrata) Ray Nagin – um rico empreiteiro afro-americano, dirigente de uma
sociedade de televisão a cabo e eleito em 2002 com 87% dos votos dos eleitores
brancos3 – que
era responsável, em última instância, pela segurança de seus administrados,
sendo que cerca de um quarto deles era muito pobre ou muito deficiente para
possuir um veículo. Sua incrível incapacidade de mobilizar os recursos
necessários para a evacuação dos habitantes não motorizados e dos pacientes dos
hospitais – apesar do sinal de alerta que constituía a falta de preparo da
municipalidade diante da ameaça do furacão Ivan em setembro de 2004 – reflete
mais que uma simples incompetência pessoal: ela personifica o egoísmo de classe
das elites da cidade, quer sejam brancas ou negras, perfeitamente insensíveis à
sorte dos concidadãos pobres das cidades destruídas e das zonas marginais.
Na história dos
Estados Unidos, nenhum desastre foi antecipado com tal grau de precisão como o
Katrina ;
Catástrofe anunciada
História de uma catástrofe
anunciada ? De fato, ao longo da história dos Estados Unidos nenhum desastre
foi antecipado com tal grau de precisão, contrariamente às afirmações
falaciosas do ministro da segurança interior, Michael Chertoff. Se for verdade
que os especialistas foram surpreendidos pelo rápido aumento do poder do
Katrina, eles não alimentavam nenhuma dúvida sobre as conseqüências de um
furacão maior.
Desde a nefasta experiência do
furacão Betsy – uma tempestade de categoria dois que já tinha inundado em
setembro de 1965 boa parte dos bairros do leste da cidade devastados pelo
Katrina –, a vulnerabilidade de Nova Orleans foi estudada a fundo e de maneira
completa; e os resultados destes estudos foram amplamente difundidos. Em 1998,
depois da passagem do felizmente benigno furacão Georges, redobraram-se os
esforços de pesquisa, e uma simulação digital avançada efetuada pela
Universidade da Louisiana mencionou a “destruição virtual” da cidade por um
ciclone de categoria quatro vindo do sudoeste4. Os diques e os muros de contenção de Nova
Orleans são preparados para resistir no máximo a um furacão de categoria três.
Mas, depois de novas simulações efetuadas em 2004, pelo corpo da Engenharia do
exército, mesmo este nível de proteção constatou-se ser ilusório.
A erosão permanente das ilhas
costeiras e de zonas pantanosas do litoral da Louisiana (que faz com que
desapareçam entre 60 e 100 quilômetros quadrados de costa por ano) se traduz
por um aumento do poder das ondas de tempestade no momento em que elas atingem
Nova Orleans, enquanto a própria cidade em si e seus diques afundam-se
lentamente. Mesmo um furacão de categoria três, se sua trajetória é
suficientemente lenta, pode inundá-la quase inteiramente5.
Nova Orleans é uma
cidade majoritariamente negra, cujos eleitores fazem, muitas vezes, pender a
balança em favor dos democratas ;
Negligência federal
Para fazer com que os
responsáveis políticos compreendessem estas previsões, outros estudos ofereciam
uma avaliação precisa dos estragos antecipados em caso de impacto direto de um
ciclone. Todas as simulações em computador reproduziam os mesmos números
aterradores: ao menos 160 quilômetros quadrados de superfície urbana
completamente submersa, entre 80 mil e 100 mil mortos. Em 2001, à luz destes
estudos, a FEMA tinha anunciado que a inundação de Nova Orleans, depois de um
ciclone, seria uma das três mega-catástrofes mais prováveis em um futuro
próximo em território dos Estados Unidos (os dois outros seriam um sismo na
Califórnia e um ataque terrorista em Manhattan). Em 2004, após os
meteorologistas terem anunciado uma forte retomada da atividade de ciclone, as
autoridades federais organizaram um exercício de simulação sofisticado, a
operação “Furacão Pam”, que confirmou, mais uma vez, que as vítimas poderiam
ser contabilizadas em dezenas de milhares.
Em resposta, a administração Bush
rejeitou as exigências urgentes do estado da Luisiana em matéria de prevenção
de inundações. Ela pôs em prática um importante plano de revitalização das
zonas pantanosas da costa, o projeto Coast 2050 – fruto de um decênio de
pesquisa e de negociação –, e cortou por diversas vezes o orçamento de
manutenção e de construção de diques, deixando inacabadas as infra-estruturas
de contenção ao redor do lago Pontchartrain.
A Engenharia militar do exército
foi, ela também, vítima de cortes orçamentários que refletem em boa medida as
novas prioridades de Washington: forte baixa dos impostos para os ricos,
financiamento da guerra no Iraque e – ironicamente – aumento das despesas de
“segurança interior”. Sem contar as motivações políticas: Nova Orleans é uma
cidade majoritariamente negra, cujos eleitores fazem, muitas vezes, pender a
balança em favor dos democratas quando das eleições na Louisiana. Por que uma administração
tão descaradamente partidária deveria ser presenteada por seus adversários
outorgando os 2,5 milhões de dólares necessários para construir um sistema de
proteção de categoria cinco em redor de Nova Orleans 6?
Não contente com as
proezas orçamentárias, a Casa Branca empenhou-se, de maneira irresponsável, em
esvaziar a FEMA
Em benefício das empresas
Na verdade, quando o chefe da
Engenharia, um ex-congressista republicano, protestou em 2002 contra a asfixia
orçamentária dos programas contra inundações, Bush obrigou-o a se demitir. Mas
não sejamos injustos: Washington gastou imensas quantias na Louisiana... Mas
essencialmente para os trabalhos de infra-estrutura beneficiando os interesses
das empresas portuárias e marítimas e os distritos eleitorais sob hegemonia
republicana7.
Não contente com estas proezas
orçamentárias, a Casa Branca empenhou-se também, de maneira irresponsável, em
esvaziar a FEMA. Quando seu diretor (que tinha então o estatuto de ministro)
era James Lee Witt, este organismo era uma das jóias da administração Clinton.
Quando da enchente no Mississipi em 1993 e do tremor de terra de Los Angeles em
1994, sua eficácia na organização do socorro tinha sido saudada por
unanimidade.
Entretanto, quando os
Republicanos tomaram a direção da FEMA, em 2001, comportaram-se como se
tivessem conquistado um país. Seu novo chefe, Joe M. Allbaugh, ex-diretor da
campanha de Bush, tomou o cuidado de cancelar boa parte dos principais
programas de prevenção de inundações e tempestades. Depois de ter deixado seu
cargo em 2003, ele se converteu em consultor regiamente pago para assessorar
empresas na busca de contratos no Iraque (dando seqüência às suas idéias, ele
acaba de reaparecer na Louisiana, onde manifesta seus talentos de iniciado em
benefício das empresas desejosas de conseguir sua parte nos apetitosos lucros
da reconstrução). Desde que ela foi integrada ao departamento da segurança
interior, em 2003 (e que perdeu o estatuto de Ministério), obras inteiras da
FEMA foram desmanteladas e paralisadas. Em 2004, funcionários deste organismo
escreveram ao Congresso denunciando “a troca de gestores competentes em matéria
de prevenção de catástrofes por comerciantes jogando em favor de interesses
políticos e de noviços sem experiência nem conhecimentos sérios8”.
Quando as águas
começaram a submergir Nova Orleans, foi praticamente impossível contatar
qualquer responsável pelo telefone ;
Negligência e despreparo
O sucessor de Allbaugh, Michael
Brown, é a perfeita encarnação disso tudo. Uma semana após ter recebido os
elogios do presidente, este advogado republicano totalmente profano em matéria
de prevenção de catástrofes, que tinha falsificado seu curriculum vitae, foi
despedido.
Sob sua direção, a FEMA tinha
continuado a ser despojada de suas competências polivalentes e de seus
orçamentos, para se dobrar aos objetivos monomaníacos da luta contra o
terrorismo e à construção de uma linha Marginot contra a ameaça da Al Qaida.
No dia 28 de agosto, domingo, em
uma vídeo-conferência, o diretor do Observatório nacional de furacões de Miami,
Max Mayfield, preveniu o presidente Bush (em férias no Texas) e os funcionários
do departamento de segurança interior que o Katrina estava a ponto de devastar
Nova Orleans. Brown estava pronto: “Estamos completamente preparados para
enfrentar este desafio. Há anos que nos antecipamos a este tipo de desastre
natural”. Há muitos meses o diretor da FEMA e o Ministro da segurança interior
exibia os méritos do novo plano nacional de urgência, pronto para garantir uma
coordenação sem precedente entre os diversos organismos governamentais, em caso
de uma catástrofe maior.
Entretanto, quando as águas
começaram a submergir Nova Orleans e seus subúrbios, foi praticamente
impossível conseguir contatar qualquer responsável pelo telefone. As equipes de
socorro e os funcionários municipais se encontraram desprovidos de qualquer
meio de comunicação funcional, sem contar a penúria de provisão vital – rações
alimentares, água potável, sacos de areia, óleo, sanitários móveis, ônibus,
barcos e helicópteros – que a FEMA deveria ter providenciado de maneira
preventiva. Chertoff nem esperou 24 horas após a inundação para classificar o
desastre como “calamidade de importância nacional” – estatuto jurídico
indispensável para decretar a mobilização geral dos recursos federais.
Como nem ônibus ou
trem estavam previstos pelas autoridades, os pobres eram obrigados a deixar a
cidade a pé ;
Lentidão fatal
A infinita lentidão com a qual o
cérebro de dinossauro da segurança interior registrou o tamanho do desastre foi
fatal para centenas de habitantes de Nova Orleans, agonizando sobre os tetos ou
num leito de hospital. No dia 2 de setembro, Chertoff ainda explicava a um
repórter escandalizado da rádio pública nacional que as cenas de caos e de
desespero no interior do Superdome, difundidas pelas televisões do mundo
inteiro, não passavam de “boatos anedóticos”... Quanto ao senhor Brown, ele se
apegava essencialmente ao fato de que as vítimas, segundo ele, se tornaram
responsáveis por “não levar em conta as palavras de ordem de evacuação”, como
se tudo isso não tivesse nada a ver com a ausência de veículo ou à dificuldade
de se dirigir ao Baton Rouge em cadeira de rodas. Simulações tinham demonstrado
que ao menos um quinto da população estava incapacitada de deixar a cidade por
seus próprios meios. 9
Segundo o ministro da defesa,
Donald Rumsfeld, a tragédia do Katrina não tinha nada a ver com o Iraque.
Porém, desde o início da catástrofe, a ausência de mais de um terço dos membros
da Guarda nacional da Louisiana e de uma boa parte de seu equipamento pesado
limitou de forma grave as operações de salvamento. Socorros teriam também sido
úteis nos arredores do Paço Municipal: o posto de comando de urgência ficou
fora de serviço desde o início por falta de combustível para alimentar o
gerador de socorro. Como nenhum telefone funcionava, o prefeito e seus
colaboradores estavam desligados do mundo exterior durante dois dias. Esta
paralisia do aparelho de gestão municipal é chocante porque, desde 2002, a
prefeitura tinha utilizado 18 milhões de dólares de subvenção federal para
treinar seu pessoal para enfrentar este tipo de situação.
Em setembro de 2004, o senhor
Nagin já tinha sido severamente criticado por sua passividade diante do furacão
de categoria três Ivan (cuja trajetória desviou da cidade no último momento):
nesta oportunidade, nada tinha sido previsto para evacuar os pobres. Diante
destas críticas, a municipalidade produziu, destinados aos bairros pobres, 30
mil vídeos (nunca distribuídos) cuja mensagem era a seguinte: “Não espere a
intervenção da municipalidade, não espere a intervenção do Estado, não espere a
intervenção da Cruz Vermelha, (...) parta”. Como nem ônibus ou trem estavam
previstos para estes casos pelas autoridades, os pobres eram, portanto,
obrigados a deixar a cidade a pé; quando as condições de higiene e de segurança
no interior do Superdome se tornaram insustentáveis, foram centenas que
tentaram deixar a cidade a pé atravessando a ponte que ligava o subúrbio branco
de Gretna, mas eles foram enxotados por policiais municipais apavorados que
disparam suas armas sobre suas cabeças.
O objetivo é
transformar Nova Orleans em um grande parque de atrações e retirar os pobres da
vista dos turistas
Mais branca e mais segura
Uma parte dos habitantes
abandonados à mercê das águas saberá interpretar a incrível incúria de seu
prefeito à luz da profunda fratura social e racial que caracteriza Nova
Orleans. Ninguém ignora que as elites econômicas locais e seus aliados do
Centro da cidade sonham em expulsar os habitantes mais pobres, aos quais eles
atribuem a elevada taxa de delinqüência. Aqui, residências populares que
compõem há muito tempo sua paisagem foram arrasadas para dar lugar a imóveis de
luxo e a um supermercado. Fora daí, os habitantes das cidades podem ser
expulsos se seus filhos violam o estado de emergência. O objetivo parece ser
transformar Nova Orleans em um grande parque de atrações e de retirar os pobres
da vista dos turistas, forçando-os a morarem na periferia, nas margens dos
braços do rio Mississipi, nos parques de caravanas e penitenciárias.
Desde então, para alguns
partidários de uma Nova Orleans mais branca e mais segura, o Katrina é uma
divina surpresa. É isso que um líder republicano de Louisiana confiava a
comerciantes de Washington: “Finalmente, as cidades de Nova Orleans foram
limpas. O que nós não conseguimos, Deus se encarregou de fazer10.” Da mesma forma, para o prefeito Nagin, as
ruas desertas e os bairros em ruína são uma dádiva: “Pela primeira vez, nossa
cidade está livre da droga e da violência e nós queremos muito conservá-la
neste estado.”
Na verdade, sem um esforço maciço
das autoridades locais e federais, para fornecer habitações de baixo custo para
as dezenas de milhares de locatários pobres, hoje refugiados nos abrigos sem
nenhuma escolha, nos quatro cantos do país, Nova Orleans corre o risco de
conhecer uma espécie de limpeza étnica. Já se fala em transformar alguns
bairros mais desfavorecidos, situados acima do nível do mar, como o Lower Ninth
Ward, em bacias de retenção destinadas a proteger os bairros mais ricos. “O que
impediria alguns habitantes mais pobres da cidade de voltar a se instalarem em
seus bairros”, ressalta, acerca desse assunto, o Wall Street Journal11.
O impacto imediato do
Katrina foi a queda brutal da popularidade do presidente – e da presença
americana no Iraque ;
Hegemonia republicana ameaçada
O prefeito Nagin já tomou o
cuidado de velar pelos interesses da “alta sociedade” anunciando a designação
de uma comissão especial de reconstrução de dezesseis membros: oito brancos e
oito negros, enquanto que 75% da população é afro-americana. Por outro lado, os
bairros brancos – base de inquietante sucesso eleitoral do neonazista David
Duke, nos inícios dos anos 1990 – também têm a intenção de defender a sua
causa. E o status quo republicano do Mississipi vizinho não quer deixar a
estrela aos democratas da metrópole da Louisiana. Em meio a todos estes
conflitos de interesse, pode-se duvidar se os bairros negros tradicionais de
Nova Orleans – verdadeiro berço da sensibilidade festiva da cidade e de seu
patrimônio jazzístico – consigam se safar dessa jogada.
Quanto à administração Bush, ela
espera sair-se com uma espécie de mistura de cripto-keynesianismo orçamentário
e de engenharia social ultraconservadora. Sabe-se que o impacto imediato do
Katrina foi uma queda brutal da popularidade do presidente – e da presença
americana no Iraque. A hegemonia republicana pareceu, momentaneamente,
ameaçada. Pela primeira vez, desde os distúrbios raciais
Em busca de uma estratégia para
tirar Bush do burburinho de Louisiana, a ultraconservadora Heritage Foundation
multiplicou os seminários acolhendo ideólogos reacionários, congressistas
republicanos e alguns reconciliados como Edwin Meese, ex-ministro da justiça de
Ronald Reagan.
Os republicanos
prometem fazer surgir dos escombros da catástrofe uma verdadeira utopia
capitalista ;
Tudo para a livre iniciativa
No dia 15 de setembro, o
presidente escolheu cenário deserto mas iluminado de Jackson Square, uma praça
tradicional de Nova Orleans, para pronunciar seu discurso sobre a reconstrução.
Radiante, prometeu aos dois milhões de vítimas do Katrina que a Casa Branca,
apesar do déficit orçamentário, pagaria o essencial da fatura do desastre, ou seja,
200 bilhões de dólares (o que não o impede, de forma nenhuma, propor novas
baixas de impostos maciços para as grandes fortunas)!
Depois disso, anunciou toda uma
série de reformas cobiçadas por sua base ultraconservadora: um sistema de
controle para a educação e o alojamento, o reforço do papel das igrejas,
generosos descontos de impostos para o setor privado, a criação de uma “zona
regional de oportunidade econômica” e a suspensão de toda uma série de
regulamentações federais abordando, principalmente, controles de meio ambiente
para as perfurações petroleiras.
Para aqueles acostumados com a
linguagem presidencial, o discurso na Jackson Square tem um encantador gostinho
de “já vimos este filme”: já não tínhamos ouvido promessas semelhantes nas
margens do rio Eufrates? Segundo o cruel comentário do colunista Paul Krugman,
depois de ter frustrado a tentativa de transformar o Iraque “em um laboratório
do neoliberalismo”, a Casa Branca vai, a partir de então, utilizar como cobaia
os habitantes traumatizados de Biloxi e do Ninth Ward13. Segundo o congressista Mike Pence, um dos
animadores do poderoso Republican Study Group que contribuiu para a elaboração
do programa de reconstrução do presidente Bush, os republicanos vão fazer
surgir dos escombros da catástrofe uma verdadeira utopia capitalista: “Vamos
fazer do litoral do Golfo um pólo de atração magnético para a livre iniciativa.
Não se trata, absolutamente, de reconstruir uma Nova Orleans dominada pelo
setor público14.”
É muito sintomático que o corpo da Engenharia de Nova Orleans seja, a partir de então, comandado pelo mesmo oficial que era encarregado da supervisão dos trabalhos públicos no Iraque15. Não importa que o Lower Ninth Ward tenha desaparecido sob as ondas; os proprietários de tabernas do Vieux Carré já esfreguem as mãos, ansiosos: não está longe o dia em que os trabalhadores de Halliburton, os mercenários de Blackwater e os engenheiros de Bechtel virão despejar seus dólares federais na Bourbon Street. Como dizem as populações francófonos na Louisiana e certamente, também, na Casa Branca: “Deixe o bom tempo passar!”
notas
1 -
Quirin Schiermeier, “The power of Katrina”, Nature, n. 437, Londres, 8 de
setembro de 2005.
2 -
NT: Legislação do tempo do New Deal que obriga as obras públicas a respeitarem
o salário mínimo local. Ela é há muito tempo alvo dos republicanos
conservadores.
3 - Se
a Louisiana votou majoritariamente em Bush em 2004 (56,7%), entretanto Nova
Orleans é tradicionalmente democrata.
4 -
Estudo realizado por Joseph Suhayda e descrito no Richard Campanella, Time and
Place em Nova Orleans: Past Geographies in the Present Day, Gretna, Los
Angeles, 2002, p.58.
5 -
Travis, op. cit., p. 1657.
6 -
Alfred C. Naomi, do corpo de engenheiros do exército, citado por Andrew Revkin
e Christopher Drew, “Intricate Flood Protection Long a Foocus of Dispute”, The
New York Times, 1º de setembro de 2005.
7 - Editorial, “Katrina´s Message on the
Corps”, The New York Times, 13 de setembro de 2005.
8 - Ken Silverstein, “Top FEMA jobs: No
Experience Required”,
9 - Tony Reichhardt, Erika Check e Emma
Morris, “After the flood”, Nature, n. 437, 8 de setembro de 2005.
10 - Conceito do congressista Richard Baker
(Baton Rouge), citado pelo Wall Street Journal, Nova York, 9 de setembro de
2005.
11 - Jackie Calmes, Ann Carrns e Jeff
Opdyke, “As Gulf Prepares to Rebuild, Tensions Mount Over Control”, Wall Street
Journal, 15 de setembro de 2005.
12 - Editorial, “Hurricane Bush”, Wall
Street Journal, 15 de setembro de 2005.
13 - “Not the New Deal”, The New York
Times, 16 de setembro de 2005.
14 - John Wilke e Brody Mullins, “After
Katrina, Republicans Back a
15 - Editorial, “M. Bush in
*(Transcrito do Le Monde
Diplomatique, edição brasileira, novembro de 2005, ano VI, nº 70. Tradução
de Celeste Marcondes)
**Autodidata,
autor, entre outros, de The Monster at Our Door. The Global Threat of Avian
Flu, The New Press,