Microfísica do Poder 

O sentido da Visão (detalhe),  Pieter Brueghel, o jovem, 1617.

 Michel Foucault

 

 

Hérodote:

O trabalho que você realizou recobre (e alimenta) em grande parte a reflexão que realizamos em geografia e, de modo mais geral, a que realizamos sobre as ideologias e estratégias do espaço.

Ao questionar a geografia, deparamos com certo número de conceitos: saber, poder, ciência, formação discursiva, olhar, episteme, e a arqueologia que você elaborou contribuiu para orientar a nossa reflexão. Assim, a hipótese proposta na Arqueologia do Saber de que uma formação discursiva não se define nem por um objeto, nem por um estilo, nem por um jogo de conceitos permanentes, nem pela persistência de uma temática, mas deve ser apreendida como um sistema de dispersão regulado nos permitiu delimitar melhor o discurso geográfico.

Por outro lado, ficamos surpresos com o seu silêncio no que diz respeito á geografia (salvo erro, você só evocou sua existência em uma comunicação consagrada a Cuvier, e assim mesmo para relegá−la às ciências naturais). Paradoxalmente, seria motivo de estupor se a geografia fosse levada em conta, pois apesar de Kant e Hegel, os filósofos ignoram a geografia. Deve−se incriminar os geógrafos que, desde Vidal de la Blanche, resolveram se resguardar, ao abrigo das ciências sociais, do marxismo, da epistemologia e da história das ciências, ou devemos incriminar filósofos, indispostos com uma geografia inclassificável, "deslocada", dividida entre as ciências naturais e as ciências sociais? A geografia terá um "lugar" na sua arqueologia do saber? Você não estará reproduzindo, ao arqueologizá−la, a separação entre ciências da natureza (o inquérito, o quadro) e ciências do homem (o exame, a disciplina), dissolvendo assim o lugar onde a geografia poderia se estabelecer?

 

Michel Foucault:

Para começar, uma resposta empírica. Tentaremos em seguida ver se há outra coisa por detrás.

Se eu fizesse a lista de todas as ciências, de todos os conhecimentos, de todos os domínios do saber de que não falo e deveria falar, e de que estou próximo de uma maneira ou de outra, essa lista seria quase infinita. Eu não falo de bioquímica, eu não falo de arqueologia. Nem mesmo fiz uma arqueologia da história. Tomar uma ciência porque ela é interessante, porque é importante ou porque sua história teria alguma coisa de exemplar não me parece um bom método. Será sem dúvida bom método se o que se quer é fazer uma história correta, limpa, conceitualmente asséptica. Mas desde o momento em que se quer fazer uma história que tenha um sentido, uma utilização, uma eficácia política, só se pode fazê−la corretamente sob a condição de que se esteja ligado, de uma maneira ou de outra, aos combates que se desenrolam neste domínio. Dos domínios cuja genealogia tentei fazer, o primeiro foi a psiquiatria, porque eu tinha certa prática e certa experiência de hospital psiquiátrico e senti que ali havia combates, linhas de força, pontos de confronto, tensões. A história que fiz, só a fiz em função desses combates. O problema, o desafio, o prêmio era poder formular um discurso verdadeiro e estrategicamente eficaz; ou ainda, de que modo a verdade da história pode ter efeito político.

 

Héradote:

Isso vai ao encontro de uma hipótese que eu lhe submeto: se existem pontos de confronto, tensões, linhas de força na geografia, eles são subterrâneos pela própria ausência de polêmica em geografia. Ora, o que pode atrair um filósofo, um epistemólogo, um arqueólogo é ser árbitro ou tirar proveito de uma polêmica já iniciada.

 

Michel Foucault:

É verdade que a importância de uma polêmica pode atrair. Mas eu não sou de forma alguma dessa espécie de filósofo que formula ou quer formular um discurso de verdade sobre uma ciência qualquer. Legislar para toda a ciência é o projeto positivista. Eu me pergunto se em certas formas de marxismo 'renovado" não se caiu em tentação semelhante, que consistiria em dizer: o marxismo, como ciência das ciências, pode fazer a teoria das ciências e estabelecer a separação entre ciência e ideologia. Ora, essa posição de árbitro, de juiz, de testemunha universal, é um papel a que me recuso absolutamente, pois me parece ligado à instituição universitária da filosofia.

Se faço as análises que faço, não é porque há uma polêmica que gostaria de arbitrar mas porque estive ligado a certos combates: medicina, psiquiatria, penalidade. Nunca pretendi fazer uma história geral das ciências humanas, nem uma crítica geral da possibilidade das ciências. O subtítulo de As Palavras e as Coisas não é a arqueologia mas uma arqueologia das ciências humanas.

Cabe a vocês, que estão diretamente ligados ao que se passa na geografia, que se depara com todos esses confrontos de poder em que a geografia está envolvida, cabe a vocês enfrentá−los, forjar os instrumentos para este combate. E, no fundo, vocês deveriam me dizer: "Você não se ocupou com esta coisa que não lhe diz muito respeito e que você não conhece bem". E eu lhes responderia: "Se uma ou outra "coisa" (em termos de abordagem ou de método) que acreditei poder utilizar na psiquiatria, na penalidade, na história natural pode lhes servir, fico satisfeito. Se forem obrigados a recorrer a outros ou a transformar os meus instrumentos, mostrem−me, porque também poderei lucrar com isso".

 

H.:

Você se refere com muita freqüência aos historiadores: Lucien Febvre, Braudel, Le Roy Ladurie. E muitas vezes os homenageou. Acontece que esses historiadores tentaram dialogar com a geografia e até instaurar uma geo-história ou uma antropogeografia. Havia, através destes historiadores, a oportunidade de um encontro com a geografia. Por outro lado, ao estudar a economia política e a história natural, você se aproximou bastante do domínio geográfico.

Podemos assinalar assim uma aproximação constante com a geografia, sem que ela jamais seja levada em conta. Não existe em minha pergunta nem a exigência de uma hipotética arqueologia da geografia nem realmente uma decepção: somente uma surpresa.

 

M.F.:

Tenho certo escrúpulo em só responder por argumentos concretos, mas creio que é preciso também desconfiar dessa vontade de essencialidade: se você não fala de algo é porque certamente tem obstáculos maiores que iremos eliminar. Pode−se muito bem não falar de algo simplesmente porque não se conhece, não porque tenhamos disto um saber inconsciente e, portanto inacessível. Você me pergunta se a geografia tem um lugar na arqueologia do saber. Sim, contanto que se mude a formulação. Achar um lugar para a geografia seria o mesmo que dizer que a arqueologia do saber tem um projeto de recobri mento total e exaustivo de todos os domínios do saber, o que de modo algum é o que tenho em mente. A arqueologia do saber é simplesmente um modo de abordagem.

É verdade que a filosofia, ao menos a partir de Descartes, sempre esteve ligada no Ocidente ao problema do conhecimento. Não se escapa disso. Quem se pretender filósofo e não se colocar a questão o que e o conhecimento? "ou" o que é a verdade?", em que sentido se poderia dizer que é um filósofo? E mesmo que eu diga que não sou filósofo, se for da verdade que me ocupo, eu sou apesar de tudo filósofo. A partir de Nietzsche, essa questão se transformou. Não mais: qual é o caminho mais seguro da Verdade?, mas qual foi o caminho aleatório da verdade? Era esta a questão de Nietzsche e é também a questão de Husserl em A Crise das Ciências Européias. A ciência, a coerção ao verdadeiro, a obrigação de verdade, os procedimentos ritualizados para produzi−la há milênios atravessam completamente toda a sociedade ocidental e agora se universalizaram para se tornar a lei geral de toda a civilização. Qual é a sua história, quais são os seus efeitos, como isso se entrelaça com as relações de poder? Se se toma esse caminho, a geografia é concernida por um semelhante método. E preciso tentar esse método em relação à geografia, como também em relação à farmacologia, à microbiologia, à demografia, etc. Ela não tem, propriamente falando, um lugar mas seria preciso poder fazer esta arqueologia do saber geográfico.

 

H.:

Se a geografia não é visível, não é captável no campo que você explora em que pratica suas escavações, isto talvez se ligue à démarche deliberadamente histórica ou arqueológica que privilegia de fato o fator tempo. Pode-se notar assim que você tem um cuidado rigoroso com a periodização, que contrasta com o indefinido, a relativa indeterminação das suas localizações.

Seus espaços de referência são indistintamente a cristandade, o mundo ocidental, a Europa do Norte, a França, sem que esses espaços de referência sejam realmente justificados ou mesmo precisados. Você escreveu que "cada periodização recorta na história um certo nível de acontecimentos e, inversamente, cada camada de acontecimentos pede sua periodização, uma vez que, segundo o nível que se escolha, dever−se−á delimitar periodizações diferentes e, segundo a periodização que se dê, atingir-se-á níveis diferentes. Chega-se assim à metodologia complexa da descontinuidade". E possível e mesmo desejável conceber e construir uma metodologia da descontinuidade a respeito do espaço e das escalas espaciais. Você privilegia de fato o fator tempo, com o risco de delimitações ou de espacializações nebulosas, nômades.

Espacializações incertas que contrastam com o cuidado de recortar etapas, períodos, idades.

 

M.F.:

Coloca-se aí um problema de método, mas também de suporte material, ou seja, simplesmente a possibilidade de um homem sozinho percorrer este caminho. Com efeito, eu poderia perfeitamente dizer: história da penalidade na França. Afinal foi essencialmente o que fiz, com algumas incursões, referências, investidas fora. Se não digo isso, se deixo oscilar uma espécie de fronteira vaga, um pouco ocidental, um pouco nomadizante, é porque a documentação que pesquisei ultrapassa um pouco as fronteiras da França e porque freqüentemente para compreender um fenômeno francês fui obrigado a me referir a alguma coisa que se passava em outros lugares, que lá seria pouco explícita, que era anterior no tempo, que lhe serviu de modelo. O que me permite, ressalvando modificações regionais ou locais, situar esses fenômenos nas sociedades anglo-saxã, espanhola, italiana, etc. Eu não especifico mais porque seria tão abusivo dizer: "eu só falo da França" quanto dizer: "eu falo de toda a Europa". Efetivamente seria necessário precisar – mas este é um trabalho a ser feito em grupo − onde esse tipo de processo não é mais encontrado, a partir de onde se pode dizer: "é outra coisa que acontece".

 

H.: Essa espacialização incerta contrasta com a profusão de metáforas espaciais: posição, deslocamento, lugar, campo; e às vezes mesmo geográficas: território, domínio, solo, horizonte, arquipélago, geopolítica, regiões, paisagem.

 

M.F.:

Pois bem, vejamos o que são essas metáforas geográficas.

Território é sem dúvida uma noção geográfica, mas é antes de tudo uma noção jurídico-política: aquilo que é controlado por um certo tipo de poder.

Campo: noção econômico−jurídica.

Deslocamento: um exército, uma tropa, uma população se deslocam.

Domínio: noção jurídico-política.

Solo: noção histórico-geológica.

Região: noção fiscal, administrativa, militar.

Horizonte: noção pictórica, mas também estratégica.

 

Destas, só uma noção é verdadeiramente geográfica, a de arquipélago. Só a utilizei uma vez, para designar, e por causa de Soljenitsyne − o arquipélago carcerário − essa dispersão e ao mesmo tempo o recobrimento universal de uma sociedade por um tipo de sistema punitivo.

 

H.:

De fato, estas noções não são estritamente geográficas. São, contudo noções básicas de todo enunciado geográfico. Evidencia-se assim o fato de que o discurso geográfico produz poucos conceitos e os extrai de tudo que é lugar. Paisagem é uma noção pictórica, mas é um objeto essencial da geografia tradicional.

 

M.F.

Mas você tem certeza de que eu tirei essas noções da geografia e não precisamente de onde a geografia as retirou?

 

H.:

O que se deve enfatizar, a respeito de certas metáforas espaciais, é que elas são tanto geográficas quanto estratégicas, e isso é muito normal visto que a geografia se desenvolveu à sombra do exército. Entre o discurso geográfico e o discurso estratégico, pode−se observar uma circulação de noções: a região dos geógrafos é a mesma que a região militar (de regere, comandar) e província o mesmo que território vencido (de vincere). O campo remete ao campo de batalha...

 

M.F.:

Reprovaram-me muito por essas obsessões espaciais, e elas de fato me obcecaram. Mas, através delas, creio ter descoberto o que no fundo procurava: as relações que podem existir entre poder e saber. Desde o momento em que se pode analisar o saber em termos de região, de domínio, de implantação, de deslocamento, de transferência, pode-se apreender o processo pelo qual o saber funciona como um poder e reproduz os seus efeitos. Existe uma administração do saber, uma política do saber, relações de poder que passam pelo saber e que naturalmente, quando se quer descrevê-las, remetem àquelas formas de dominação a que se referem noções como campo, posição, região, território. E o termo político-estratégico indica como o militar e o administrativo efetivamente se inscrevem em um solo ou em formas de discurso. Quem encarasse a análise dos discursos somente em termos de continuidade temporal seria necessariamente levado a analisá-la e encara-la como a transformação interna de uma consciência individual. Construiria ainda uma grande consciência coletiva no interior da qual se passariam às coisas.

Metaforizar as transformações do discurso através de um vocabulário temporal conduz necessariamente à utilização do modelo da consciência individual, com sua temporalidade própria.

Tentar ao contrário decifra-lo através de metáforas espaciais, estratégicas, permite perceber exatamente os pontos pelos quais os discursos se transformam em, através de e a partir das relações de poder.

 

H.:

Althusser, no Ler O Capital, coloca uma questão análoga: "O recurso às metáforas espaciais, de que (...) o presente texto faz uso, coloca um problema teórico: o das suas condições de existência em um discurso com pretensão científica. Este problema pode ser exposto da maneira seguinte: por que um certo tipo de discurso requer necessariamente o uso de metáforas retiradas de discursos não científicos?" Althusser apresenta assim o recurso às metáforas espaciais como necessário, mas ao mesmo tempo como regressivo, não rigoroso. Tudo leva a pensar, ao contrário, que as metáforas espaciais, longe de serem reacionárias, tecnocráticas, abusivas ou ilegítimas, são antes de tudo o sintoma de um pensamento "estratégico", "combatente", que coloca o espaço do discurso como terreno e objeto de práticas políticas.

 

M.F.:

E efetivamente de guerra, de administração, de implantação, de gestão de um saber que se trata em tais expressões. Seria necessário fazer uma critica dessa desqualificação do espaço que vem reinando há várias gerações. Foi com Bergson, ou mesmo antes, que isso começou. O espaço é o que estava morto, fixo, não dialético, imóvel. Em compensação, o tempo era rico, fecundo, vivo, dialético.

A utilização de termos espaciais tem um quê de anti-história para todos que confundem a história com as velhas formas da evolução, da continuidade viva, do desenvolvimento orgânico, do progresso da consciência ou do projeto da existência. Se alguém falasse em termos de espaço, é porque era contra o tempo. E porque "negava a história", como diziam os tolos, é porque era "tecnocrata". Eles não compreendem que, na demarcação das implantações, das delimitações, dos recortes de objetos, das classificações, das organizações de domínios, o que se fazia aflorar eram processos − históricos certamente − de poder. A descrição espacializante dos fatos discursivos desemboca na análise dos efeitos de poder que lhe estão ligadas.

 

H.:

Com Vigiar e Punir, esta estrategização do pensamento entrou em uma nova etapa. Com o panoptismo, estamos além da metáfora. O que está em jogo é a descrição de instituições em termos de arquitetura, de figuras espaciais. Concluindo, você evoca até a "geopolítica imaginaria" da cidade carcerária. Essa figura panóptica dá conta do aparelho de Estado em seu conjunto?

Surge, em seu último livro, um modelo implícito do poder: uma disseminação de micro-poderes, uma rede de aparelhos dispersos, sem aparelho único, sem foco nem centro, e uma coordenação transversal de instituições e de tecnologias. Entretanto, você assinala a estatização das escolas, hospitais, casas de correção e de educação até então geridos pelos grupos religiosos ou pelas associações de beneficiência. E, paralelamente, se estabelece uma polícia centralizada, exercendo uma vigilância permanente, exaustiva, capaz de tornar tudo visível à condição de se tornar ela própria invisível. "A organização do aparelho policial sanciona no século XVIII a generalização das disciplinas e atinge as dimensões do Estado".

 

M.F.:

Com o panoptismo, eu viso a um conjunto de mecanismos que ligam os feixes de procedimentos de que se serve o poder. O panoptismo foi uma invenção tecnológica na ordem do poder, como a máquina a vapor o foi na ordem da produção. Esta invenção tem de particular o fato de ter sido utilizada em níveis inicialmente locais: escolas, casernas, hospitais. Fez-se nesses lugares a experimentação da vigilância integral. Aprendeu-se a preparar os dossiês, a estabelecer as notações e a classificações, a fazer a contabilidade integrativa desses dados individuais. Claro que a economia − e o sistema fiscal − já tinham utilizado alguns desses processos. Mas a vigilância permanente de um grupo escolar ou de um grupo de doentes é outra coisa. E esses métodos foram, a partir de determinado momento, generalizados. Desta extensão, o aparelho policial, como também a administração napoleônica, foi um dos principais vetores. Creio ter citado uma belíssima descrição do papel dos procuradores gerais do Império como sendo o olho do Imperador. E, do primeiro procurador geral em Paris ao simples substituto de província, é um único olhar que vigia as desordens, prevê os perigos de criminalidade, sanciona todos os desvios. E se por acaso qualquer coisa neste olhar universal viesse a se relaxar, se ele cochilasse em algum lugar, o Estado não estaria longe da ruína. O panoptismo não foi confiscado pelos aparelhos de Estado mas estes se apoiaram nessa espécie de pequenos panoptismos regionais e dispersos. De modo que, se quisermos apreender os mecanismos de poder em sua complexidade e detalhe, não poderemos nos ater unicamente à análise dos aparelhos de Estado. Haveria um esquematismo a evitar − esquematismo que aliás não se encontra no próprio Marx − que consiste em localizar o poder no aparelho de Estado e em fazer do aparelho de Estado o instrumento privilegiado, capital, maior, quase único, do poder de uma classe sobre outra classe. De fato, o poder em seu exercício vai muito mais longe, passa por canais muito mais sutis, é muito mais ambíguo, porque cada um de nós é, no fundo, titular de um certo poder e, por isso, veicula o poder. O poder não tem por função única reproduzir as relações de produção. As redes da dominação e os circuitos da exploração se recobrem se apóiam e interferem uns nos outros, mas não coincidem.

 

H.: Se o aparelho de Estado não é o vetor de todos os poderes, não é menos verdade, e especialmente na França com o sistema panóptico prefeitoral, que ele abranja o essencial das práticas disciplinares.

 

M.F: A monarquia administrativa de Luis XIV e Luis XV, tão fortemente centralizada, foi certamente um primeiro modelo. Foi na França de Luís XV que se inventou a polícia. Não tenho de forma alguma a intenção de diminuir a importância e a eficácia do poder de Estado. Creio simplesmente que de tanto se insistir em seu papel, e em seu papel exclusivo, corre-se o risco de não dar conta de todos os mecanismos e efeitos de poder que não passam diretamente pelo aparelho de Estado, que muitas vezes o sustentam, o reproduzem, elevam sua eficácia ao máximo. A sociedade soviética é um exemplo de aparelho de Estado que mudou de mãos e que mantém as hierarquias sociais, a vida familiar, a sexualidade, o corpo quase como era em uma sociedade de tipo capitalista. Os mecanismos de poder que funcionam na fábrica entre o engenheiro, o contramestre e o operário serão muito diferentes na União Soviética e aqui?

 

H.: Você mostrou como o saber psiquiátrico trazia consigo, pressupunha, exigia a reclusão asilar, como o saber disciplinar trazia consigo o modelo da prisão, a medicina de Bichat o espaço do hospital e a economia política a estrutura da fábrica. Pode-se perguntar, tanto para fazer efeito quanto para lançar uma hipótese, se o saber geográfico não traz consigo o círculo da fronteira seja nacional, provincial ou municipal. E, portanto se às figuras de enclausuramento, que você assinalou − louco, delinqüente, doente, proletário − não se deve acrescentar a do cidadão soldado. O espaço do enclausuramento não seria então infinitamente mais vasto e menos estanque?

 

M.F.: E uma idéia bastante sedutora. E este seria o homem das nacionalidades? Pois este discurso geográfico que justifica as fronteiras é o discurso do nacionalismo...

 

H.: A geografia sendo portanto, com a história, constitutiva desse discurso nacional, o que marca bem a instauração da escola de Jules Ferry, que confia à história-geografia a tarefa de enraizamento e de inculcação do espírito cívico e patriótico.

 

M.F.: Tendo como efeito a constituição de uma identidade. Pois minha hipótese é de que o indivíduo não é o dado sobre o qual se exerce e se abate o poder. O indivíduo, com suas características, sua identidade, fixado a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce sobre corpos, multiplicidade, movimentos, desejos, forças.

Além disso, sobre os problemas de identidade regional e sobre todos os conflitos que podem ocorrer entre ela e a identidade nacional, haveria muita coisa a dizer.

 

H.:

O mapa como instrumento de saber-poder se encontra nos três limiares que você distinguiu: medida entre os gregos, investigação na Idade Média e inquérito no século XVIII. O mapa se amolda a cada um dos limiares, se transforma de instrumento de medida em instrumento de inquérito, para se transformar hoje em instrumento de exame (mapa eleitoral, mapa das arrecadações de impostos, etc.). E verdade que a história do mapa (ou a sua arqueologia) não obedece à cronologia que você estabeleceu.

 

M.F.:

Um mapa dos votos ou das opções eleitorais é um instrumento de exame. Creio que houve historicamente essa sucessão dos três modelos. Mas é claro que essas três técnicas não ficaram isoladas umas das outras. Elas imediatamente se contaminaram. O inquérito utilizou a medida e o exame utilizou o inquérito. Depois o exame sobressaiu com relação aos outros dois, de modo que reencontramos um aspecto da sua primeira pergunta: será que distinguir exame de inquérito não reproduz a divisão ciência social/ciência da natureza? Com efeito, gostaria de ver como o inquérito como modelo, como esquema administrativo, fiscal e político, pôde servir de matriz a esses grandes percursos, realizados do final da Idade Média até o século XVIII, em que as pessoas que vasculhavam o mundo colhiam informações. Elas não as colhiam em estado bruto. Literalmente, elas inquiram, seguindo esquemas para eles mais ou menos claros, mais ou menos conscientes. E acredito que as ciências da natureza se alojaram de fato no interior desta forma geral que era o inquérito − como as ciências do homem nasceram a partir do momento em que foram aperfeiçoados os procedimentos de vigilância e de registro dos indivíduos. Mas isso foi somente o ponto de partida. E, pelas inter-relações que imediatamente se produziram, inquérito e exame interfeririam um no outro, e por conseguinte ciências da natureza e ciências do homem igualmente entrecruzaram seus conceitos, seus métodos, seus resultados. Creio que a geografia seria um bom exemplo de disciplina que utiliza sistematicamente inquérito, medição e exame.

 

H.:

Há, aliás, no discurso geográfico uma figura onipresente: a do inventário ou catálogo. E este tipo de inventário utiliza o triplo registro do inquérito, da medição e do exame. O geógrafo − talvez seja a sua função essencial, estratégica − coleta a informação. Inventário que em estado bruto não tem grande interesse, e que de fato só é utilizável pelo poder. O poder não tem necessidade de ciência, mas de uma massa de informações, que ele, por sua posição estratégica, e capaz de explorar.

Compreende-se assim melhor a pouca importância epistemológica dos trabalhos geográficos; enquanto que, por outro lado, são (ou melhor, eram) de uma utilidade considerável para os aparelhos de poder. Os viajantes do século XVII ou os geógrafos do XIX eram na verdade agentes de informações que coletavam e mapeavam a informação, informação que era diretamente explorável pelas autoridades coloniais, os estrategistas, os negociantes ou os industriais.

 

M.F.:

Posso citar, com reservas, um fato. Uma pessoa especializada em documentos da época de Luís XIV, consultando a correspondência diplomática do século XVII, se apercebeu de que muitas narrativas, que foram em seguida reproduzidas como narrativas de viajantes e que relatavam um monte de maravilhas, plantas incríveis, animais monstruosos, eram na verdade narrativas codificadas. Eram informações precisas sobre a situação militar do país visitado, os recursos econômicos, os mercados, as riquezas, as possibilidades de relação. De modo que muita gente atribui a ingenuidade tardia de certos naturalistas e geógrafos do século XVIII coisas que na realidade eram informações extraordinariamente precisas, cuja chave parece ter sido descoberta agora.

 

H.:

Quando nos perguntamos por que a geografia não conheceu nenhuma polêmica, nós logo pensamos na fraca influência que Marx exerceu sobre os geógrafos. Não houve geografia marxista, nem mesmo tendência marxista em geografia. Os geógrafos que se dizem marxistas na verdade se desviam para a economia ou a sociologia, privilegia as escalas planetária e média.

Marxismo e geografia dificilmente se articulam. Talvez o marxismo, em todo o caso O Capital, e de modo geral os textos econômicos, privilegiando o fator tempo, não se prestam bem à espacialização. Trata-se disto naquela passagem de uma entrevista em que você diz: "Seja qual for a importância das modificações introduzidas nas análises de Ricardo, eu não creio que estas análises econômicas escapem ao espaço epistemológico instaurado por Ricardo"?

 

M.F.:

Marx, para mim, não existe. Quero dizer, esta espécie de entidade que se construiu em torno de um nome próprio, e que se refere às vezes a um certo indivíduo, às vezes à totalidade do que escreveu e às vezes a um imenso processo histórico que deriva dele. Creio que suas análises econômicas, a maneira como ele analisa a formação do capital são em grande parte comandadas pelos conceitos que ele deriva da própria trama da economia ricardiana. O mérito de dizer isso não é meu, foi Marx mesmo quem o disse. Mas, em contrapartida, sua análise da Comuna de Paris ou o seu 18 Brumário de Luís Bonaparte é um tipo de análise histórica que manifestamente não depende de um modelo do século XVIII.

Fazer Marx funcionar como um "autor", localizável em um manancial discursivo único e suscetível de uma análise em termos de originalidade ou de coerência interna, é sempre possível. Afinal de contas, tem-se o direito de "academizar" Marx. Mas isso é desconhecer a explosão que ele produziu.

 

H.:

Se se relê Marx através de uma exigência espacial, sua obra parece heterogênea. Há passagens inteiras que denotam uma sensibilidade espacial espantosa.

 

M.F.:

Há algumas admiráveis. Como tudo que Marx escreveu sobre o exército e seu papel no desenvolvimento do poder político. São coisas muito importantes que praticamente foram deixadas de lado, em proveito dos incessantes comentários sobre a mais-valia.

Gostei muito desta entrevista com vocês, porque mudei de opinião entre o começo e o fim.

Confesso que no começo pensei que vocês reivindicavam o lugar da geografia como aqueles professores que protestam quando se lhes propõe uma reforma do ensino: "Vocês diminuíram a carga horária das ciências naturais, ou da música, etc. Então eu pensei: “É interessante que eles queiram que se faça a sua arqueologia, mas, afinal de contas, que eles a façam”! Eu não tinha percebido o sentido da objeção de vocês. Agora me dou conta de que os problemas que vocês colocam a respeito da geografia são essenciais para mim. Entre um certo número de coisas que relacionei estava a geografia, que era o suporte, a condição de possibilidade da passagem de uma para outra. Deixei as coisas em suspenso ou fiz relações arbitrárias.

Cada vez mais me parece que a formação dos discursos e a genealogia do saber devem ser analisadas a partir não dos tipos de consciência, das modalidades de percepção ou das formas de ideologia, mas das táticas e estratégias de poder. Táticas e estratégias que se desdobram através das implantações, das distribuições, dos recortes, dos controles de territórios, das organizações de domínios que poderiam constituir uma espécie de geopolítica, por onde minhas preocupações encontrariam os métodos de vocês. Há um tema que gostaria de estudar nos próximos anos: o exército como matriz de organização e de saber − a necessidade de estudar a fortaleza, a "campanha", o "movimento", a colônia, o território. A geografia deve estar bem no centro das coisas de que me ocupo.

 

 * Entrevista concedita a revista Hérodote nº 1, 1976.

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