Desigualdade e Pobreza*:

Uma Teoria Geográfico-Marxista

 

 

Richard Peet

 

 

*Transcrito dos Annals of the Association of American Geographers, 65 (4): 564-575, 1975. Thulo do original: "Inequality and Poverty: a marxis+t-geographic theory". Tradução de Nara Cuman Motta. Direitos reservados - e não autorizados- pela DIFEL.

 

 

 

Este artigo procura sintetizar dois conceitos: o princípio marxista de que a desigualdade e a pobreza são produzidas inevitavelmente pelas sociedades capitalistas, e a idéia geográfico-social de que a desigualdade pode transmitir-se de uma geração a outra, através do meio ambiente de oportunidades e serviços em que se encontra cada indivíduo ao nascer. Portanto, o objetivo deste trabalho é combinar uma explicação teórica convincente sobre as origens da desigualdade, com algumas generalizações empíricas sobre quem é pobre e exatamente como persiste a desigualdade sob as condições de um capitalismo "avançado". As novas idéias que tal síntese proporciona são necessárias, pois as anteriores teorias sobre a desigualdade (cultura da pobreza, ciclo de privação) foram objeto de uma severa crítica acadêmica, embora permaneçam como a base teórica das políticas antipobreza projetadas para transformar a família e o indivíduo, e não a estrutura social e econômica, na maior parte dos países ocidentais. É necessária também, dentro dos estreitos limites da disciplina geográfica, uma teoria marxista que fundamente enfoques conceituais alternativos àqueles que seguem vigentes no campo da Geografia.

 

1 - UMA TEORIA MARXISTA DA DESIGUALDADE

O marxismo estabelece que a desigualdade é inerente ao modo de produção capitalista. A desigualdade produz-se inevitavelmente no processo normal das economias capitalistas, e não pode ser eliminada sem alterar de modo fundamental os mecanismos do capitalismo. Ademais, forma parte do sistema, o que significa que os detentores do poder têm interesses criados em manter a desigualdade social. Não vale a pena, pois, dedicar energias políticas para defender as políticas que se ocupam somente dos sintomas da desigualdade, sem atacar as suas forças geradoras básicas. Daí a necessidade de uma revolução social e econômica, a derrocada do capitalismo e sua substituição por um método de produção e um gênero de vida que estejam organizados em torno dos princípios de igualdade e justiça social.

 

1.1. Desigualdades intraclassistas

Segundo Marx, a desigualdade das rendas é inerente ao regime de trabalho assalariado. No capitalismo trata-se a força de trabalho humana - duração de vida, esforço, crença e ânsia - como mera mercadoria que há de ser comprada por um patrão, a certo preço ou salário. Marx constata que os salários não só devem cobrir o sustento básico para a manutenção do corpo, mas também algumas necessidades determinadas socialmente, que mantenham o trabalhador relativamente contente e aumentem o crescimento econômico. Ademais, os salários incluem os custos de substituição dos "trabalhadores desgastados por outros novos" e o custo de criar e educar as crianças; isto é, assegurar o desenvolvimento da força de trabalho através da educação e da aprendizagem. Como os diferentes tipos de trabalho requerem diferentes níveis de educação e qualificação, assim também os salários devem ser distintos entre as distintas categorias dos trabalhadores. Portanto, e como primeiro resultado, a desigualdade dos salários é necessária para produzir a variedade de força de trabalho necessária para os distintos níveis de uma multidão de atividades econômicas diferentes. Em segundo lugar, o sistema capitalista assegura a desigualdade de acesso à hierarquia qualificada dentro da classe operária, repartindo os custos da reprodução social através do mecanismo salarial e permitindo que cada "grupo de trabalhadores" produza sua substituição. Em terceiro lugar, a desigualdade de acesso à educação e à qualificação permite que grupos de assalariados exagerem as diferenças de salários inerentes à hierarquia qualificada, ao monopolizar parcialmente e restringir a oferta de trabalhos a certos níveis da hierarquia de trabalho. A desigualdade de salários e de oportunidades dentro da classe de assalariados fundamenta-se no regime de trabalho assalariado. Por isso, Marx afirmou: "pedir uma retribuição igual ou uma retribuição eqüitativa sobre a base do sistema do salário é o mesmo que pedir liberdade sobre a base de um sistema fundado na escravatura: O que poderíamos reputar justo ou eqüitativo, não vem ao caso. O problema está em saber o que é necessário e inevitável dentro de determinado sistema de produção?". É a conclusão política para a classe operária? "Em lugar do lema conservador de: ‘Um salário justo por uma jornada justa de trabalho’, deverá inscrever em sua bandeira esta ordem revolucionária: 'Abolição do sistema de trabalho assalariado!’"

 

1. 2. Desigualdades interclassistas

Em troca dos salários o capitalista recebe força de trabalho viva, a força criativa pela qual o trabalhador não só produz o que consome, mas também produz um excedente que acumula para o capitalista. Na realidade, o próprio capital (as matérias-primas, os instrumentos e a maquinaria de produção) é o produto do excedente do trabalho no passado. O capital é força de trabalho histórico acumulado pela classe capitalista porque havia podido pagar o trabalho com uma soma inferior ao valor dos benefícios produzidos pelos trabalhadores, isto é, ela foi apta em explorá-los. Uma economia de empresa privada, entretanto, acusará inevitavelmente grandes desigualdades de salários entre a classe capitalista, que controla o uso do trabalho anterior acumulado e obtém parte da produção de muitos trabalhadores sob a forma de benefícios, e o proletariado, "possuidor meramente da força de trabalho", que recebe ordenados somente em forma de salário.

Com o tempo, à medida que o capital vai-se acumulando, Marx sustenta que as desigualdades entre as classes aumentam. Reconhece que os lucros dos operários aumentam em certos momentos como, por exemplo, em períodos de rápido desenvolvimento econômico, e que a pobreza tende a diminuir nos mesmos períodos, mas sustenta que em longo prazo o acúmulo de capital permite uma participação cada vez maior nos lucros nacionais por parte dos donos dos meios de produção. A situação material do operário pode melhorar, mas a custo de sua relativa posição social. Assim, pois, em termos de igualdade de classe, os interesses do capital e os interesses do trabalho no desenvolvimento econômico são diametralmente opostos.

 

1.3. As funções da desigualdade

A desigualdade social é muito útil, pois serve de estímulo aos assalariados para se esforçarem cada vez mais, particularmente em um país de alto nível aquisitivo e consumista como os Estados Unidos. Novas tendências de consumo introduzem-se constantemente nos escalões superiores da hierarquia social, donde se difundem para a base através do sistema muito eficaz dos meios de comunicação orientados para o consumo, até que as pessoas mais pobres estejam imbuídas da mania de um artigo mais novo. A imensa maioria das pessoas está agarrada numa luta sem fim para ganhar o suficiente, de modo a consumir de alguma maneira uma quantia e ao ritmo que marca o grupo de consumo superior a elas. Este tipo de desigualdade é altamente funcional, porquanto assegura que se realize, inclusive, um trabalho mais desagradável e pesado e apressa ao máximo a força de trabalho. Finalmente, isto é também uma fonte sistemática de desvantagens, pois a desigualdade é somente funcional, enquanto os "desiguais" crêem que haja uma possibilidade de poder alcançar um nível de consumo parecido com os das classes altas. A desigualdade é a origem de uma grande frustração e alienação entre os grupos, que já não crêem mais nesta possibilidade, e os problemas sociais que resultam desses sentimentos representam uma das contradições mais fundamentais do capitalismo avançado.

 

2 – UMA TEORIA MARXISTA DA POBREZA

Marx explicou também como o funcionamento normal do capitalismo produz necessariamente uma subclasse mais ou menos permanente de desempregados e, portanto, de pobres.

 

2.1. Os efeitos da mecanização

O desejo de lucro, sustenta Marx, leva o capitalista a reduzir constantemente os custos da produção por meio de uma grande divisão do trabalho e à introdução e aperfeiçoamento da maquinaria. A mecanização produz o excedente explorável pelos donos dos meios de produção e incrementa a produtividade do trabalho e, assim, aumenta o capital disponível para reinvertê-lo em mais maquinarias, serviços e matérias-primas. Os custos de produção representam cada vez mais os custos da depreciação da maquinaria e cada vez menos os custos do trabalho assalariado, à medida que o capitalismo se desenvolve e que se utiliza da maquinaria a ritmo crescente. Marx fala de uma troca na composição orgânica do capital inerente ao crescimento da riqueza social: o capital constante (dinheiro utilizado para adquirir e depreciar maquinaria e matérias-primas) aumenta em relação ao capital variável (dinheiro para adquirir força de trabalho). Assim, pois, a demanda relativa de trabalho diminui à medida que o desenvolvimento econômico capitalista vai aumentando. Precisam taxas de crescimento econômico cada vez mais altas para absorver as novas ofertas no mercado de trabalho, inclusive para manter os postos já existentes. Um excedente relativo de população aparece rapidamente. Pode-se adiar o crescimento de uma força de trabalho supérflua, desnecessária e excedente através de um desenvolvimento econômico muito rápido. Isto foi o que sucedeu com a expansão da fronteira norte-americana no Século XIX e princípios do XX, ou durante o período de suburbanização e compra maciça de bens de consumo, que se seguiu imediatamente à Segunda Guerra Mundial. Mas confiar na frenética compra de bens de consumo para manter a economia em forma implica no risco de que a gente eventualmente se canse do consumo, ou que esta pressão que mina a base dos recursos disponíveis chegue a ser demasiado grande e o crescimento diminua. Há sinais abundantes e recentes do último e o economista marxista Paul Sweezy afirma que o fenômeno anterior vinha-se produzindo durante alguns anos; sem os enormes gastos militares, a economia dos Estados Unidos esteve "tão profundamente em crise como esteve na grande Depressão". A teoria marxista, pois, prognostica que o crescimento sem travas do capitalismo gera uma massa de desempregados e que desembocará finalmente num generalizado afastamento dos operários dos meios mecanizados de produção de riqueza, fato que criará as condições necessárias para a revolução social.

 

2.2. O exército de reserva industrial

Marx disse que as economias capitalistas, para seu funcionamento dia após dia e ano após ano, necessitam de um "exército de reserva industrial", uma reserva de gente pobre que pode ser utilizada e desprezada à vontade do capitalista. O desenvolvimento econômico não se processa suavemente sob o capitalismo. Quando se abrem novos mercados produzem-se momentos de grande expansão: inclusive velhas indústrias em declínio prosperam de novo em época de auge econômico. Em tal situação, a economia necessita de mudança rápida de mão-de-obra; uma reserva de mão-de-obra faz-se necessária para convertê-la em força de trabalho quando se necessita e despedi-la rapidamente assim que diminua a demanda ou o exija a mecanização. A utilização da reserva de mão-de-obra em épocas de rápido desenvolvimento econômico impede que a mais-valia pare a mão-de-obra, em lugar da acumulação de capital.

Marx divide este exército de reserva industrial em três tipos: latente, flutuante e intermitente. Em primeiro lugar, a parte latente do exército de reserva industrial é gerada pela mecanização agrícola, que produz um excedente de população rural "constantemente em condições de ser absorvido pelo proletariado urbano ou manufatureiro, e na espreita de circunstâncias propícias para esta transformação". No Século XIX e princípios do XX, o camponês europeu formou uma reserva de trabalho latente para a indústria americana, e os negros do sul e outros grupos rurais minoritários desempenharam o mesmo papel durante os últimos cinqüenta anos." Em segundo lugar, a reserva flutuante está composta por trabalhadores, atraídos às vezes pela indústria moderna e rechaçados por outras, especialmente jovens e pessoas mais idosas nos tempos de Marx, mas agora em grande parte imigrantes recém chegados da cidade e antigos imigrantes marginalizados que, de outro modo, subsistem graças aos seguros sociais. Em terceiro lugar, a reserva de trabalho intermitente é uma parte do exército de mão-de-obra ativa, que tem um emprego sumamente irregular. Tem os mínimos salários (devido à competição premente das massas de trabalhadores latentes ou flutuantes) e as condições de vida desse grupo estão abaixo do padrão do resto da classe operária. Nos tempos de Marx, a força de trabalho intermitente era utilizada principalmente em indústrias domésticas pequenas e irregulares, se bem que se utilizasse também como reserva potencial de mão-de-obra barata nas indústrias regulares. Hoje se utiliza na "economia periférica" ou no "mercado de trabalho secundário", onde os trabalhadores têm uma produtividade baixa, uns salários abaixo do padrão e empregos instáveis. Uma vez mais, os grupos de minorias culturais e raciais constituem parte importante da reserva de trabalho intermitente.

Assim, pois, o essencial do raciocínio marxista é que a desigualdade não é um "mal temporal" nem a pobreza um "paradoxo surpreendente" nas sociedades de capitalismo avançado; em vez disso, a desigualdade e a pobreza são vitais para o funcionamento normal das economias capitalistas. A desigualdade é necessária para produzir uma força de trabalho diversificada, por seu papel na produção de um excedente expropriável e por sua função como incentivo para trabalhar. A mecanização, a automatização e o ritmo desigual do desenvolvimento econômico produzem inevitavelmente desemprego, subemprego e pobreza. A desigualdade está na base de todo sistema econômico de vida.

 

3 – O MEIO AMBIENTE E DESIGUALDADE

A teoria marxista assinala que a desigualdade se produz inevitavelmente no sistema capitalista. É uma meta teoria que trata das grandes forças que configuram milhões de vidas, e que significam pouco para a pessoa, a menos que ela possa ver como sua vida e as circunstâncias particulares que a rodeiam se encaixam nos modelos gerais preditos por Marx. A teoria do meio ambiente ou geográfica se ocupa dos mecanismos que perpetuam a desigualdade, sob o ponto de vista do indivíduo. Preocupa-se com o complexo de forças, estímulos e fricções que configuram de modo imediato o curso da vida de uma pessoa. Trata-se de uma análise à micro escala que complementa, perfeitamente, a análise de Marx à macro escala.

 

3.1 – O meio ambiente dos recursos sociais

A luta individual para ganhar a vida desenvolve-se em certo meio físico, social e econômico. Esse meio ambiente pode ser entendido como uma série de recursos – serviços, contatos e oportunidades – com os quais interaciona o indivíduo. O resultado eventual desta interação é a produção de bens e serviços para a sociedade e de salários para o indivíduo.

Os componentes mais importantes do meio físico são a casa e o bairro, que influem na produtividade individual por meio de fatores tais como a saúde física e mental. As escolas, as universidades, os institutos técnicos e outros centros para a formação da força de trabalho são os elementos sócio-constitucionais mais influentes, ainda que ampla variedade de outras instituições tenha também um papel em preparar o indivíduo para o trabalho. Estes "fatores ambientais" vêm a ser os que determinam o "potencial de salários da pessoa e dizer a produtividade teórica de seus rendimentos sempre que a oportunidade econômica for ilimitada. Sem impedimento, antes que se possa obter esta produtividade, deve-se ter alguma conexão com as atividades econômicas. As conexões mais significativas são os conhecimentos pessoais, isto é, os amigos e parentes de seu meio ambiente social". A rede de relações sociais oferece informações sobre oportunidades econômicas e um caminho aberto para elas. As instituições de formação e as redes de informação formam os "recursos sociais" disponíveis ao indivíduo. A interação com as atividades econômicas produz os lucros e a quantidade desses rendimentos influi por sua vez no acesso aos recursos sociais.

O núcleo da idéia de uma geografia da desigualdade é a compreensão de que um indivíduo, ao preparar-se para o mercado de trabalho, só pode aproveitar os recursos sociais de uma área limitada do espaço. Esta idéia fica mais bem explicada no modelo têmporo-espacial de Hägerstrand, que descreve o meio de vida cotidiano "em torno do lugar de residência de uma pessoa", cujos limites ficam fixados pelas fricções físicas da distância e pela fricção sócio-espacial de classe e raça. Cada grupo de idade, classe social, grupo social e sexo têm um "prisma" diário de diferente tamanho onde se movimenta. Para a classe inferior e mais discriminada, o prisma se converte numa prisão; sob o ponto de vista de espaço e recursos.

O modelo simples de Hägerstrand só inclui alguns dos fatores que limitam o alcance do meio ambiente cotidiano de uma pessoa. Entretanto, não se trata de embelezar o modelo de tempo-espaço relacionando-o com outros modelos de interação, mas aplicar este conceito à explicação da transmissão da desigualdade. Está claro que um indivíduo deve obter serviços, informações e relações do complexo de recursos sociais, que formam as pessoas e as instituições do meio ambiente cotidiano a seu alcance. Não obstante, e em primeiro lugar, a extensão do meio que se pode aproveitar varia com a mobilidade e esta, por sua vez, varia com as quantias iniciais. Em segundo lugar, a densidade dos recursos sociais varia conforme os diferentes meios ambientes. Em terceiro lugar, e é o mais importante, a qualidade dos recursos também é distinta: alguns sistemas escolares são melhores que outros, determinados complexos sociais proporcionam mais informações e de melhor qualidade que outros, e assim todos os demais. Podemos pensar, pois, que uma pessoa já vem marcada por determinado meio de certas dimensões, densidade e qualidade, ao lançar-se na interação com uma superfície de oportunidades econômicas, que varia de modo similar em tamanho, densidade e qualidade. Através do indivíduo o meio social interaciona com nível de oportunidades econômicas para que produza salários. As deficiências de qualidade de qualquer nível originam salários baixos. Por sua vez, salários baixos influenciam o acesso a um meio de recursos sociais, à sua qualidade e ao nível de oportunidades econômicas. Um processo de círculo vicioso vem fixar de modo efetivo os parâmetros de salários para a imensa maioria das pessoas.

 

3.2. A influência da classe social

Assim, pois, os recursos ambientais de uma pessoa, e seu conseqüente acesso em nível de oportunidades econômicas, dependem muito dos salários iniciais ou da classe social de seus pais. Em outras palavras, da posição de classe herdada dos pais através da qualidade do meio social e econômico-institucional em que vivem os primeiros anos de sua vida. Os pais lutam para melhorar. o meio ambiente de seus filhos, confiando assim em proporcionar-lhes os meios para que ascendam socialmente. Este esforço para aumentar a categoria do meio ambiente pode ocorrer no próprio lugar, havendo melhoras no bairro (investimentos em serviços locais), ou emigrando para outra vizinhança que proporcione ambiente diário com as características desejadas. Ambas as coisas requerem que os pais sacrifiquem o consumo imediato em prol da inversão no futuro da família. A família, pois, tem enorme interesse no meio local, já que representa os sacrifícios passados e as esperanças de um futuro para a família. O domínio (conjunto dos meios ambientes da vida diária) utilizado por certo grupo de famílias da classe operária, por exemplo, representa uma fonte escassa de mobilidade social e o seu desfrute é protegido intensamente frente a outros grupos que poderiam debilitar ou "poluir" os recursos básicos contidos no território. Esta reação frente aos "forasteiros", que nos E.U.A. toma a forma clara de discriminação racial e étnica, remonta à prática da reprodução da força de trabalho para o regime de trabalho assalariado, e se intensifica por uma falta geral de mobilidade social. Aqui é onde a teoria do meio ambiente deve enlaçar-se com a análise marxista, que explica o contexto em que o homem se interaciona com o meio sócio-econômico nos países capitalistas.

 

4 – SÍNTESE DE TEORIAS

O funcionamento normal do sistema econômico capitalista produz uma série de classes sociais, que tem distintas funções e que são desiguais com respeito a seus salários, poder e status.

Cada classe, e até cada camada dentro de uma mesma classe, é levada a reproduzir a si mesma valendo-se de uma parte dos salários da geração presente para criar, educar e preparar a geração de futuros participantes no sistema de produção. A geração adulta investe no meio ambiente dos recursos sociais usado pelas gerações em crescimento, e a quantidade de dinheiro colocada a cada classe varia, de modo que a quantidade que pode ser investida nos recursos sociais varia, produzindo meios ambientes desiguais que perpetuam o sistema de classes.

 

4.1. A hierarquia dos meios ambientes

A hierarquia dos diferentes meios de recursos, que compõem a geografia social da cidade moderna, constitui, pois, uma resposta a demanda hierárquica de trabalho da economia urbana. Do mesmo modo que o sistema capitalista de produção origina uma estrutura de classe social hierárquica, assim também proporciona meios ambientes diferenciados de recursos sociais, nos quais cada classe se reproduz a si mesma. A troca na hierarquia de meios ambientes e, portanto, na estrutura sócio-espacial da cidade, produz-se sob a influencia da troca na demanda de trabalho que ocorre no desenvolvimento econômico. Em épocas de crescimento econômico, a demanda aumenta para certos tipos de trabalho, criando uma escassez temporal, salários mais elevados e o incentivo para maior oferta dessas classes de mão-de-obra. O desenvolvimento também proporciona os fundos necessários para reorientar os sistemas de oferta de mão-de-obra, que produzem operários qualificados atrav6s de salários superiores. O capitalismo necessariamente mant6m as desigualdades sociais ao confiar basicamente no regime de trabalho assalariado para produzir novas ofertas de trabalho.

Apesar de uma estrutura intrínseca de tipo desigual, este processo não produz necessariamente grandes tensões sociais, pois todos os meios vão melhorando a existe a possibilidade de passar de uma camada a outra, de um meio ambiente a outro. Os problemas só aparecem quando uma depressão econômica inverte o processo (produzindo salários baixos, reduzindo serviços e, assim, sucessivamente), ou quando o descobrimento opressor da falta de mobilidade destrói o mito de que "todo mundo tem oportunidade se trabalhar suficientemente". Quando grupos inteiros se dão conta de que não tem nenhuma oportunidade para melhorar sua sorte, de que um bairro pobre no centro da cidade ou um antigo bairro proletário deteriorado vai ser o seu lar e o de seus filhos para toda a vida, o potencial de revolta se amplia. Uma ação semelhante ocorreu nos anos 60 nos bairros negros das cidades americanas. Por quê?

 

4.2. As origens do protesto negro

Marx assinalou que à medida que o desenvolvimento econômico avança sob o capitalismo, a composição orgânica do capital tende a mudar, perdendo importância o capital variável e adquirindo-a o capital constante. Em termos de classe, este crescimento do capital constante cria novos empregos no setor de serviços (na organização, administração, supervisão e vendas), mas produz diminuindo na relativa demanda do setor secundário e especialmente de obras da produção. Desde a Segunda Guerra Mundial, os recursos do meio ambiente melhoraram sumamente em bairros de trabalhadores do setor de serviços, e inclusive em alguns dos de secundário, já que deviam subministrar à demanda de trabalho mais qualificado e mais "intelectualizado". As áreas rurais mais pobres e os bairros do centro das cidades ficaram descuidados devido à falta de demanda deste tipo de mão-de-obra. Portanto, os salários estão atualmente abaixo do nível de subsistência e não deixam nenhum excedente para investir no melhoramento do meio ambiente local. Desde logo, o setor de serviços e indústrias manufatureiras marginais continuam necessitando de mão-de-obra não qualificada, mas a automação eliminou o incentivo para qualificar esta mão-de-obra com o objetivo de ser incorporada na economia industrial normal. A reprodução de mão-de-obra não qualificada só necessita de um meio ambiente que posse manter simplesmente uma vida quase vegetativa, que inclui a mínima qualificação e injeta uma forte dose de ética do trabalho. Assim, as zonas de classes mais baixas se vêem privadas do dinheiro necessário pare poder chegar aos níveis altos de saúde, educação e qualificação, que possuem as zonas da classe média. São reservas internas para o exército de reserva dos quase sem emprego; são áreas que periodicamente explodem com violência e que podem ser a base geográfica de uma revolução.

 

5. PLANIFICAÇÃO DE UMA SOCIEDADE IGUALITÁRIA

Conseguir a igualdade social significara muito mais que a política liberal de redistribuir a riqueza por meio do sistema de impostos. A verdadeira igualdade social s6 se pode conseguir alterando as forças que geram a desigualdade; como estas são fundamentais para o funcionamento do sistema de produção capitalista, a igualdade social implica necessariamente grandes trocas neste sistema e de modo especial o controle social sobre os meios de produção de riqueza. Não obstante, a revolução igualitária presumira inclusive muito mais que isso. Como os rendimentos Am refletir mais as necessidades das famílias que as necessidades de um sistema de propriedade privada de produção, tende-se a idealizar novos métodos que reproduzam socialmente uma força de trabalho com qualificação diferenciada. A socialização do controle sobre a reprodução da força de trabalho e, por conseguinte, do meio social é, pois, um corolário da igualdade dos rendimentos.

Os geógrafos podem acelerar a consecução da igualdade criando modelos alternativos e convincentes para planificar e controlar o meio ambiente. O modelo alternativo mais real é o de incrementar o controle central e estatal sobre a inversão, no meio ambiente, de recursos sociais, para assegurar que a igualdade se faça. 0 problema desse modelo, entretanto, é a burocratização, e a conseqüente falta de sentido de controle sobre o próprio meio ambiente. Um modelo alternativo e atrativo, elaborado pelos anarquistas em sua forma mais completa, implica uma propriedade descentralizada, por parte dos trabalhadores, dos meios de produção um sistema entrelaçado de controle comunitário sobre o meio ambiente. Um debate entre todos os que propõem esses modelos especiais alternativos ajudaria a criar idéias convincentes sobre o controle popular do meio ambiente, do trabalho a da vida. As pessoas desenvolvem-se em contínua resposta ao meio ambiente total e nós, que somos da esquerda, acreditamos que os atuais meios ambientes impedem um desenvolvimento humano pleno. Podemos ajudar a que nossa visão do "homem total" seja realidade, idealizando modelos ambientais que sejam igualitários e libertadores; igualitários já que devem proporcionar a base para uma igualdade inerente, e libertadores já que deve permitir também o desenvolvimento pleno de cada indivíduo como pessoa única. Enfrentamos, pois, uma tarefa quase esmagadora; não obstante, a geografia da igualdade futura exige nossa dedicação.

 

 

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