O QUE A GEOGRAFIA DEVE SER*
Piotr Kropotkin
Era
fácil prever que o grande renascimento das ciências naturais, o qual nossa
geração tem tido a sorte de acompanhar desde há trinta anos, assim como a nova
orientação dada à literatura científica por um grupo de homens eminentes, que
se dispuseram a apresentar os resultados das mais
complexas investigações científicas de forma acessível ao público em geral,
deveriam necessariamente provocar um renascimento equivalente na geografia.
Esta ciência, que toma em consideração as leis descobertas pelas suas ciências
irmãs e coloca em pauta as suas ações e efeitos mútuos em relação à superfície
do globo, não poderia permanecer à margem do movimento científico em geral; e
assistimos na atualidade o despertar de um interesse pela geografia que
relembra o interesse por ela suscitado na geração anterior, durante a primeira
metade do século XIX.
É
verdade que não contamos hoje com um viajante e filósofo tão capaz como foi
Humboldt; porém, as recentes expedições ao ártico e as investigações nas
profundidades abissais, e, mais ainda, os rápidos progressos experimentados
pela biologia, pela climatologia, pela antropologia e pela etnologia comparada,
têm fornecido aos trabalhos geográficos uma atração tão considerável e um
significado tão profundo, que os próprios métodos de descrição da Terra vêm experimentando desde há algum tempo uma profunda
modificação. Reaparece novamente na literatura geográfica o mesmo nível de
explicação científica e de fundamentação filosófica a que Humboldt e Ritter nos haviam acostumados. Não se deve estranhar,
portanto, que os livros de viagens e aqueles de descrições geográficas gerais
estejam voltando a ser o tipo mais popular de leitura.
Era
também totalmente natural que o renascimento do interesse pela geografia
dirigisse a atenção do público para a geografia na escola. Realizaram-se
pesquisas e descobriu-se, com estupor, que havíamos conseguido que esta ciência
– a mais atrativa e sugestiva para pessoas de todas as idades – resulte em
nossas escolas como um dos temas mais áridos e carentes de significado. Nada
interessa tanto às crianças como as viagens; e nada é mais árido e menos
atrativo, em muitas escolas, do que aquilo que nelas é batizado com o nome de
geografia. 0 mesmo podemos dizer, quase que com as mesmas palavras e com raras
exceções, em relação a física, à química, à botânica,
à geologia, à história e às matemáticas. Uma reforma em profundidade no ensino
de todas as ciências e tão necessária quanto uma reforma na educação
geográfica. Todavia, apesar da opinião pública ter permanecido bastante
indiferente á respeito de uma reforma geral de nossa educação científica –
mesmo quando os homens mais eminentes deste século a tenham preconizado –, ela
parece, em troca, ter entendido rapidamente a necessidade de reformar o ensino
da geografia: a discussão recentemente iniciada pela Real Sociedade Geográfica
Britânica tem sido acolhida com simpatia geral por parte da imprensa. O Nosso
mercantilizado século parece ter entendido melhor a necessidade de uma reforma
na medida em que foram colocados em pauta os chamados interesses
"práticos" da colonização e da guerra. Uma discussão rigorosa deve
forçosamente demonstrar que não se pode chegar a nada de sério nesse sentido
desde que não se empreenda uma correlativa, porém, muito mais ampla, reforma
geral do nosso sistema educacional.
É
quase seguro que não existe outra ciência que possa tornar-se tão atrativa para
a criança como a geografia, e que possa se constituir num poderoso instrumento
para o desenvolvimento geral do pensamento, assim como familiarizar o estudante
com o verdadeiro método de investigação científica para despertar sua afeição
pela ciência natural. As crianças não são verdadeiras admiradoras da natureza
enquanto esta não tiver alguma ligação com a humanidade. O sentimento
artístico, que desempenha um papel tão importante papel no deleite intelectual
do naturalista, é demasiado débil na criança. As harmonias da natureza, a
beleza de suas formas, as admiráveis adaptações de seus organismos, a
satisfação obtida pela inteligência no estudo das leis físicas – tudo isso pode
vir depois, porém não ainda na primeira infância. A criança busca em todas as
partes o homem, a atividade humana, as lutas contra os obstáculos. Os minerais
e as plantas deixam-na fria; ela está atravessando uma etapa em que prevalece a
imaginação. Quer dramas humanos, o que significa que a melhor maneira de
suscitar-lhe o desejo de estudar a natureza é pelos relatos de pescadores e
caçadores, de navegantes, de enfrentamentos com os perigos, de costumes e
hábitos, de tradições e migrações. Alguns "pedagogos" modernos buscam
matar a imaginação das crianças. Os melhores são aqueles conscientes de como a
imaginação constitui uma excelente ajuda para o raciocínio científico. Entendem
assim que não é possível uma explicação científica profunda sem a ajuda de um
poder de imaginação bastante desenvolvido; e utilizam a imaginação da criança
não para abarrotá-la de superstições, mas sim para despertar a sua paixão pelos
estudos científicos. A descrição da Terra e de seus habitantes constituirá com
certeza um dos melhores meios para alcançar tal fim. Relatos do homem lutando
contra as forças hostis da natureza – o que poderá ser melhor do que isso para
inspirar na criança o desejo de averiguar os segredos dessas forças? Pirar na
criança o desejo de averiguar os segredos dessas forças? Pode-se despertar
facilmente nas crianças a feição por "colecionar", transformar seus
quartos em exposições de curiosidades, ao passo que, nas idades mais
prematuras, não é fácil despertar o desejo de investigar as leis da natureza;
nada é mais fácil que despertar numa mente infantil a capacidade de comparação
mediante o relato das histórias de países distantes, de suas plantas e animais,
de suas paisagens e fenômenos, sempre que plantas e animais, ciclones e
tormentas, ou erupções vulcânicas, guardem relação com o homem. Esta é a tarefa
da geografia na primeira infância: tomando a humanidade como intermediária,
desenvolver nas crianças o interesse pelos grandes fenômenos da natureza,
despertar seu desejo de conhecê-los e explicá-los.
A
Geografia deve cumprir, também, um serviço muito mais importante. Ela deve nos
ensinar, desde nossa mais tenra infância, que todos somos irmãos, independentemente
da nossa nacionalidade. Nestes tempos de guerras, de
ufanismos nacionais, de ódios e rivalidades entre nações, que são habilmente
alimentados por pessoas que perseguem seus próprios e egoísticos interesses,
pessoais ou de classe, a geografia deve ser – na medida em que a escola deve
fazer alguma coisa para contrabalançar as influências hostis – um meio para
anular esses ódios ou estereótipos e construir outros sentimentos mais dignos e
humanos. Deve mostrar que cada nacionalidade contribui com sua própria e
indispensável pedra para o desenvolvimento geral da humanidade, e que somente
pequenas frações de cada nação estão interessadas em manter os ódios e
rivalidades nacionais. Deve reconhecer que, além de outras causas que nutrem as
rivalidades nacionais, as diferentes nações não se conhecem suficientemente bem
entre si; as espantadas perguntas sobre seu país, que se fazem
a um estrangeiro; os absurdos preconceitos mútuos, que se estendem aos extremos
de um continente – e até a ambos os lados de um canal – são prova suficiente de
que, mesmo entre aqueles que se costuma denominar gente culta, a geografia e
apenas conhecida pelo nome. As pequenas diferenças de características nacionais, aparecem especialmente entre as classes médias, tendem a
ocultar a imensa semelhança que existe entre as classes trabalhadoras de todas
as nacionalidades, semelhança que se converte no fato mais significativo à
medida que se obtém um maior conhecimento. É tarefa da Geografia é esclarecer
essa realidade, e com grande ênfase devido ao contexto de mentiras acumuladas
pela ignorância, presunção e egoísmo. Deve reforçar nas mentes das crianças que
todas as nacionalidades são valiosas umas para as outras; que quaisquer que
sejam as guerras que tenham ocorrido, subjaz sempre no fundo destas o mais
míope dos egoísmos. (...)
Esta
segunda tarefa é suficientemente importante. Porém, existe uma terceira, que
talvez o seja ainda maior: a de combater os preconceitos que foram inculcados
em relação às chamadas “raças inferiores” – e isto numa época que tudo nos leva
a crer que os contatos que vamos ter com elas vão ser cada vez mais intensos.
Quando um político francês proclamava recentemente que a missão dos europeus é
civilizar essas raças – ou seja, com as baionetas e as matanças [genocídios] –
não fazia mais do que elevar à categoria de teoria esses mesmos fatos que os
europeus estão praticando diariamente [notadamente na África e na Ásia, no
final do século XIX]. E não poderia ser de outra maneira, pois desde a mais
tenra infância inculca-se o desprezo pelos “selvagens”, ensina-se a considerar
como se fosses verdadeiros crimes determinados hábitos e costumes dos “pagãos”,
a tratar as “raças inferiores”, como são chamadas, como se fossem um verdadeiro
câncer que somente deve ser tolerado enquanto o dinheiro ainda não penetrou.
Até agora os europeus têm "civilizado os selvagens" com whisky,
tabaco e seqüestros; os têm inoculado com seus vícios; os têm escravizado.
Porém, é chegado o mo mento em que nos devemos considerar obrigados a oferecer-lhes
algo melhor – isto é, o conhecimento das forças da natureza, a ciência moderna,
a forma de utilizar o conhecimento científico para construir um mundo melhor.
Assim,
o ensino da Geografia deve perseguir três objetivos principais: despertar nas crianças
a afeição pela ciência natural em seu conjunto; ensinar-lhes
que todos os homens são irmãos, quaisquer que sejam as suas nacionalidades; e
deve ensinar-lhes a respeitar as chamadas “raças inferiores”. Desde que se
admita isso, a reforma da educação geográfica é imensa: consiste nada
menos que na completa renovação da totalidade do sistema de ensino de nossas
escolas. (...)
Existe
atualmente uma corrente pedagógica que afirma que devemos
reconhece-la, uma tendência no sentido de cuidar demasiadamente da mente
infantil, até o ponto de frear o raciocínio individual e de restringir a
originalidade; e existe também uma tendência dirigida no sentido de facilitar
em demasia a aprendizagem, até o ponto de produzir uma criança desacostumada a
realizar qualquer esforço intelectual próprio, ao invés de fazer o contrário, a
acostumar a criança a realizar esforços intelectuais cada vez mais complexos.
Concedamos a nosso educando mais liberdade para seu desenvolvimento intelectual!
Deixemos mais espaço para o seu trabalho independente, sem mais ajuda do
professor do que a estritamente necessária. (...)
Onde
encontrar professores para levar a cabo essa imensa tarefa de educação?
Esta é, nos retrucam, a grande dificuldade que todo
plano de reforma do ensino encontra. Onde encontrar, de fato, várias centenas
de milhares de Pestalozzis e Frobels**,
que dêem uma instrução verdadeiramente sólida às nossas pequenas
crianças? Seguramente não nas filas desse triste exército de professores
aos quais condenamos a ensinar durante toda sua vida, desde a juventude até o
túmulo; que são enviados a um povo com o qual carecem de toda
relação intelectual de reciprocidade, e que prontamente se acostumam a
considerar o seu trabalho como uma maldição. Seguramente que não nas fileiras
daqueles que somente enxergam o ensino como uma profissão assalariada e nada
mais além disso. Apenas personalidades excepcionais
podem continuar sendo bons professores, nessas condições, até uma idade
avançada. Estes homens e mulheres preciosos devem constituir, cumpre dize-lo,
os irmãos maiores de um exército de educadores cujas fileiras devem ser
preenchidas com voluntários orientados em seu labor por aqueles que têm
consagrado toda sua vida à nobre tarefa da pedagogia. Jovens, homens e
mulheres, que dediquem um ano de sua vida ao ensino porque são movidos pelo
desejo de ajudar os mais novos em seu desenvolvimento intelectual; gente de
mais idade, que está disposta a consagrar determinadas horas a ensinar temas de
sua preferência – uns e outros constituirão provavelmente o exército de
educadores de um sistema de educação menos organizado. Em todo caso, claro está
que não é precisamente convertendo o ensino em uma profissão assalariada que
conseguiremos uma boa educação para nossas crianças, e manteremos em nossos
pedagogos esse espírito aberto e receptivo que é imprescindível para ajustar-se
às crescentes necessidades da ciência. 0 professor somente será um verdadeiro
professor quando sinta verdadeiro amor tanto pelas crianças como pelos temas
que ensina, e esse sentimento não pode perdurar durante anos se o ensino é
apenas uma profissão. Pessoas dispostas a dedicar suas energias e ensinar, e
suficientemente capazes de faze-lo, não faltam em
nossa sociedade. Falta saber como descobri-las, como interessá-las pela
educação e combinar seus esforços; e em suas mãos, com a ajuda de gente mais
experimentada, nossos colégios serão muito rapidamente diferentes do que são
agora. Serão lugares onde jovens gerações assimilarão conhecimentos e
experiências das mais velhas, ao passo que estas, em contato com as primeiras,
recuperarão novas energias para um trabalho conjunto em benefício da
humanidade.
*
“What Geography
ought t be”, excertos
selecionados e traduzidos de Antipode: a Radical Journal of Geography,
vol.10/11, n° 1/3, 1976, pp. 6-15. Mas este ensaio de kropotkin
foi originalmente publicado in The Nineteenth Contury, XXI, Londres,
dezembro de 1885. [Seleção e tradução de José William Vesentini].
*Tanto Pestalozzi como Fröbel foram
importantes educadores do século XIX, ambos admirados por Kropotkin,
que viveu de
UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE O
TEXTO
Para
alguns, especialmente os mais jovens, embora também para determinadas pessoas
mais experientes todavia acomodadas intelectualmente,
é difícil entender o significado de um texto já antigo, neste caso do final do
século XIX – de 1885. É que eles absolutizou
o conhecimento – normalmente o dicotomizando e
classificando em gavetas ou rótulos simplistas do tipo “novo” e “velho” ou
então “positivista” e “dialético” – e com isso não percebem que toda
fala, toda mensagem deve ser contextualizada, deve ser analisada em função dos
seus interlocutores, daqueles conceitos, idéias ou valores com os quais ela dialoga
ou trava um combate intelectual.
Qual era e como era a época de Kropotkin? O que ele
gostaria de mudar – tanto na geografia como na sociedade – e como? Que tipo de
escola existia e afinal com quem ele dialogava?
Temos
que lembrar que o final do século XIX era um momento de colonialismo, de
partilha da Ásia e especialmente da África pelas potências européias, que
justificavam essa dominação – que implicava até mesmo em genocídios, no uso do
trabalho exaustivo e compulsório, na tentativa de imposição aos colonizados dos
idiomas, valores e hábitos dos colonizadores – através da idéia de que os
europeus tinham a nobre “missão” de levar a verdadeira
“civilização” para os demais povos ou “raças”, termo bastante empregado naquele
momento histórico. Além disso, havia um clima de nacionalismos exarcebados, de ferrenhas disputas entre as potências
européias por terras e mercados, algo que se refletia até mesmo no ensino.
Basta lembrar dos livros didáticos de geografia dessa
época, que normalmente estereotipavam os “outros”, os estrangeiros, e
supervalorizavam a “sua” nação, chegando até mesmo a arrolar o número de
soldados ou de navios de guerra que cada país “importante” tinha, sempre
subestimando o potencial dos “eternos adversários” (por exemplo: a Alemanha e a
Inglaterra, no caso da França, e vice-versa) e inflando os dados sobre a “nossa
pátria”. E inúmeros geógrafos, que em grande parte eram mais viajantes ou
exploradores a serviço do colonialismo, participavam intensamente dessa
aventura expansionista, seja produzindo idéias pretensamente científicas sobre
a superioridade do modelo civilizatório europeu, seja pela compilação de dados
sobre os recursos naturais e humanos de uma dada região: mapeamentos e estudos
sobre minérios, rios e lagos, relevo e solos, climas, povoamento e suas
características, etc. A Royal Geographical Society of London,
fazendo juz ao próprio nome, contava com membros da
família real – além de comerciantes, banqueiros, industriais interessados no
alargamento de seus negócios, etc. – em suas concorridas reuniões. A título de
parêntesis poderíamos lembrar do filme Mountains of the
Moon (As montanhas da Lua, de Bob Rafelson, de 1989 e já amplamente disponível em vídeo ou
DVD nas locadoras), que mostra algumas dessas reuniões dessa instituição com
ênfase na polêmica entre dois geógrafos (Richard F. Burton e John H. Speke) a respeito da nascente do rio Nilo. Kropotkin participou em várias dessas reuniões da Royal Geographical Society ; inclusive este seu texto sobre “o que a geografia deveria
ser” foi uma intervenção sua nessa sociedade, que depois foi ampliada e
publicada numa revista científica.
Como
se percebe facilmente, Kropotkin era uma “voz
vencida”, alguém visto com um misto de benevolência e
curiosidade – afinal ele era de uma aristocrática família russa e ao mesmo
tempo, de forma paradoxal, anarquista e conseqüentemente um utopista que
acreditava numa humanidade sem guerras e sem as intensas desigualdades de
classe, de gênero, de etnias, etc. Como um exilado russo que viveu em Londres
durante décadas, ele polemizou com os “grandes nomes” da geografia britânica do
período – a começar por Sir Halford Mackinder. Mackinder apregoava,
de forma “realista” (isto é, em consonância com o que de fato ocorria com a
geografia britânica), que a geografia “deve servir aos homens do Estado e aos
comerciantes”, embora também deva satisfazer “os reclames do sistema escolar”1.
Kropotkin, ao contrário, exorcizava qualquer tipo de
serviço para o Estado e principalmente para “os comerciantes” (ou seja, os
interesses colonialistas) e tinha uma clara aversão ao tipo de geografia que
era ensinado nas escolas fundamentais e médias. Ele acreditava no progresso
como algo inexorável – e na ciência moderna como o modelo por excelência do
conhecimento – e no princípio de que os seres humanos são iguais por natureza e
que as divisões em nações, classes, gêneros, grupos étnicos ou religiosos,
etc., seriam apenas provisórias e tenderiam a se anular com o desenrolar da
história humana. Daí a sua idéia de que a educação deveria combater qualquer
forma de ufanismos nacionalistas, de preconceitos ou estereótipos, qualquer
tipo de racismo ou de discriminação por etnias ou “raças”; e também a sua idéia
de que ao invés de “civilizar” os asiáticos e africanos, a melhor coisa que a
Europa poderia lhes fornecer seria a ciência moderna, as “leis” da natureza
como uma forma de a humanidade controlar o seu meio ambiente – sem depreda-lo
– e construir uma sociedade mais rica e mais justa. E como um bom
seguidor das idéias de Pestalozzi e de Fröbel, Kropotkin advogava um
ensino que não fosse meramente discursivo e sim alicerçado em trabalhos de
campo, em observações da realidade, em uma gradativa construção pelos educandos de conceitos, valores e atitudes.
Como
avaliar a importância das idéias de Kropotkin
para a sua época? E qual seria a sua (possível) atualidade?
Sem
dúvida que Kropotkin deve ser visto como uma das
vozes daquele rico e diversificado grupo de pensadores “de esquerda”, tal como
eles se posicionavam a partir do exemplo da Revolução Francesa: os
“socialistas” em geral – os anarquistas, socialistas utópicos, marxistas – da
segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Ele foi
amigo de Élisée Reclus,
também geógrafo e anarquista e um dos líderes da Comuna de Paris de 1871, e leu
com atenção as principais obras “socialistas” desse período, desde as de Marx
até as de Phoudon e Bakunin,
passando pelos escritos de Owen, Fourier, etc. Mas esse grupo, convém reiterar,
era extremamente heterogêneo e possuía idéias muitas vezes antinômicas. Por
exemplo: Marx e também alguns outros pensadores de “esquerda”
da época, ao contrário de Kropotkin, não criticavam o
colonialismo europeu na África e na Ásia e até mesmo chegaram a defender as
brutalidades e as matanças com o argumento de que, apesar dos pesares, isso
seria “progressista” no sentido de acelerar a história – isto é, o
desenvolvimento do capitalismo e, posteriormente, do socialismo – nessas
regiões do globo2. E também o sistema escolar era visto por uns (Owen, Fourier, Kropotkin) como
“progressista” no sentido de possibilitarem uma maior igualdade entre as
pessoas e a inculcação de novos valores e atitudes
mais igualitários, sendo que para outros (como Marx, por exemplo), a luta pela
universalização e democratização do ensino – por ele visto como “burguês” – era
algo superficial e até mesmo histriônico3. E por fim Kropotkin
jamais professou a crença numa “classe predestinada” a fazer a revolução, o
proletariado, mas, pelo contrário, sempre realçou os inúmeros “sujeitos” ou
campos de lutas que deveriam ser levados em consideração com a mesma ênfase: a natureza com a sua dinâmica e o seu equilíbrio que deveria ser
respeitado (e nunca aquele desprezo absoluto pela “natureza em si” que existe
em alguns socialistas desse período), as classes trabalhadoras (no plural), as
crianças e os jovens, as mulheres, as etnias minoritárias e as “raças” tidas
como inferiores, os povos estrangeiros, em especial aqueles mais diferentes de
“nós” e dessa forma mais discriminados, etc. Neste sentido, será que
poderíamos ver em Kropotkin um pensador mais próximo
daquilo que a partir dos anos 1970 seria rotulado como a pós-modernidade?
Sim,
o pensamento de Kropotkin tem uma
certa atualidade. Quando consultamos um bom texto
sobre como deve ser a educação no século XXI – por exemplo, o excelente
trabalho de Edgar Morin4 ou então o relatório de um grupo de
pesquisadores/educadores realizado a pedido da Unesco5 – logo notamos que ele
sublinha que a educação não deve ser um mero ensinamento de conceitos e sim uma
oportunidade para o educando aprender a aprender, a ser, a conviver (combatendo
assim todas as formas de preconceitos) e a fazer. Mais importante do que
levar o aluno a assimilar um conceito ou mesmo a aprender a escrever
corretamente é faze-lo perceber o absurdo dos
preconceitos e estereótipos, é contribuir para nele desenvolver atitudes
democráticas e o hábito do diálogo. E o sistema escolar nada tem de burguês,
mas, pelo contrário, deve sim ser visto como um passaporte para a cidadania,
que inclusive deveria ser global ou planetária segundo Edgar Morin, ou então como a maior herança ou tesouro da
humanidade, tal como aparece naquele mencionado estudo da Unesco.
E finalmente o ensino da geografia, como já preconizava Kropotkin
no final do século XIX, deve sim levar o aluno a adquirir um
paixão pela natureza e pela sua conservação racional, e isso sem entrar
num atrito cego ou mítico com a ciência moderna, e deve sim ter como uma de
suas preocupações essenciais o mostrar que a humanidade é uma só apesar das
diferenças, que todos ou povos ou “culturas” (Kropotkin
falaria em “raças”, mas esse termo era absolutamente normal na sua época)
contribuem à sua maneira para a rica complexidade de toda a humanidade.
[comentários
por José William Vesentini]
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1
Cf. MACKINDER, H.J. “On the
Scope and Methods of Geography”.
In: Proceedings of the Royal Geographical Society, IX, 1887, pp.159-60.
2
Cf. MARX, K. “O domínio britânico na Índia”. In: MARX, K. e
ENGELS, F. Sobre o colonialismo. Vol.I, Lisboa,
Estampa, 1974, especialmente pp.47-8 e 103-4.
3
Cf. MARX, K. Critica ao Programa de Ghota. Porto, Portucalense Editora, 1971, pp.32-3.
4
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo, Cortez/Unesco, 2000.
5
DELORS, J. (Org.). Educação, um tesouro a descobrir. Brasília, MEC/Unesco, 1998.