Carlos Nelson
Coutinho
Quando morreu,
em 1883, Marx havia publicado apenas uma parte relativamente exígua de sua
enorme produção teórica. Se deixarmos de lado sua vasta e dispersa atividade
como jornalista, dispunha-se apenas (e, em muitos casos, somente em bibliotecas
de difícil acesso, já que os livros estavam há muito
esgotados) de A sagrada família (1845), A miséria da filosofia (1847), O
Manifesto Comunista (1848), Contribuição à crítica da economia política (1859),
do Livro I de O capital (1867) e de alguns opúsculos econômicos e políticos.
Necessitou-se de quase um século para que a obra completa de Marx se tornasse
finalmente disponível. Ainda no século XIX, Engels editou os Livros II e III de
O Capital. Na primeira década do século XX, Karl Kautsky
tornou disponíveis os três volumes de Teorias da mais-valia, também conhecido
como o Livro IV de sua obra-prima. No início dos anos 30, vieram
à luz os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e a seminal A ideologia
alemã, escrita em colaboração com Engels, em
Também permaneceu inédita, em particular,
pelo menos até a segunda metade do século XX, uma enorme massa de manuscritos
que formam as várias tentativas de Marx no sentido de elaborar a obra teórica a
que dedicou seus melhores esforços, ou seja, sua "crítica da economia
política", finalmente intitulada O Capital. Tão logo se convenceu, depois
da derrota da revolução européia de 1848, de que o movimento revolucionário
entrara em refluxo, Marx afastou-se temporariamente de sua atividade política e
dedicou-se quase integralmente, de 1851 até o fim da sua vida, a compilar o
material necessário à redação daquela que viria a ser sua indiscutível
obra-prima, que ele julgava um empreendimento absolutamente necessário para dar
base teórica ao movimento operário e comunista ao qual aderira com o coração e
a mente.
Depois de anos de estudos na biblioteca do
Museu Britânico, quando se assenhora do essencial da
literatura econômica até então existente, Marx finalmente inicia e completa,
entre 1857 e
Dentre tais manuscritos
"econômicos" publicados postumamente, o mais famoso é certamente
aquele de 1857-1858, que os editores - com base numa indicação do próprio Marx
- intitularam Grundrisse der Kritik
der politischen Ökonomie,
ou seja, Elementos fundamentais para a crítica da economia política, conhecidos
simplesmente como Grundrisse. Neste manuscrito, com
cerca de mil páginas, Marx aborda pela primeira vez, praticamente em sua
integralidade, os temas que, mais tarde, iriam constituir os Livros I e II de O
Capital, que tratam dos processos de produção e de circulação do capital. A
primeira edição deste manuscrito apareceu em Moscou, em dois volumes, em 1939 e
1940, em seu original alemão. Em função do desencadeamento da Segunda Guerra
Mundial, esta primeira edição teve escasssíssima
divulgação no Ocidente. Somente em 1953, os Grundrisse
foram reeditados na ex-Alemanha Oriental, passando então a despertar o
interesse de estudiosos marxistas e não marxistas.
Por puro acaso, porém, um destes estudiosos
pôde tomar conhecimento da obra já em 1948. Com efeito, Roman
Rosdolsky - um polonês estudioso de Marx e militante trotsquista, perseguido pelo nazismo e pelo stalinismo,
então vivendo nos Estados Unidos, onde morreu em 1967 - tomou conhecimento,
numa biblioteca universitária norte-americana, de um dos poucos exemplares da
edição soviética dos Grundrisse que chegara ao
Ocidente. Como ele mesmo nos diz, imediatamente se deu
conta da importância do livro para o pleno conhecimento das principais
categorias da crítica marxiana da economia política.
Dedicou ao exame dos Grundrisse o resto da sua vida,
do que resultou este magnífico Gênese e estrutura de "O Capital" de
Marx, que Rosdolsky não teve a alegria de ver
publicado. O livro foi editado em alemão em 1968, um ano após sua morte.
Entre os temas principais a que se dedica Rosdolsky, em Gênese e estrutura, está precisamente o exame
das razões por que Marx alterou o plano de sua "Economia" esboçado na
época dos Grundrisse, o que o levou a abandonar essa
primeira versão de sua obra e a empreender a redação de uma
(na verdade, de duas) novas versões. Para Rosdolsky,
essas razões não se referem tanto ao abandono das descobertas teóricas de
1857-58, mas sobretudo ao fato de que Marx se deu
conta, work in progress, de
que o adequado tratamento do material demandava uma nova forma de exposição,
mais aderente à lógica dialética que Marx herdara de Hegel e que, com as
necessárias inversões materialistas, constitui a espinha dorsal do método que
utiliza em todos os seus trabalhos, em particular na sua "crítica da
economia política". Marx buscava essa maior aderência à dialética porque,
para ele, isso significava uma maior aderência também ao real, em suas
múltiplas e complexas determinações.
A atenção dedicada ao tema do método é um
dos principais méritos do livro de Rosdolsky.
Referindo-se com freqüência a Lukács, o autor de
Gênese e estrutura mostra que as reflexões econômicas de Marx não pertencem ao
domínio da "ciência econômica" de tipo positivista. Para ele, isso
resulta do fato de que Marx adota o ponto de vista da totalidade já presente na
dialética de Hegel: todos os fatos econômicos tratados por Marx são submetidos
ao crivo da historicidade e da totalidade, o que lhe permite tratar o capital como relação social (e não como "coisa") e como fato
histórico (e não como algo "natural" ou eterno). É
precisamente isto o que distingue Marx dos economistas clássicos (Smith,
Ricardo), dos quais herda as principais categorias. Rosdolsky
busca demonstrar como o método e a tessitura expositiva da crítica marxiana da economia têm como base as categorias de
"abstrato" e "concreto", de "imediaticidade"
e "mediação", de "essência" e "aparência", de
"em si" e "para si", etc., categorias que certamente têm
origem na dialética hegeliana.
Mas a maior parte da obra de Rosdolsky é dedicada precisamente ao exame das categorias
econômicas (dinheiro, capital, mais-valia, lucro e juros, etc.) tais como
aparecem nos Grundrisse. O objetivo de Rosdolsky é mostrar como esse primeiro exame de tais
categorias por Marx é decisivo para entender o modo como elas são reelaboradas na versão definitiva de O capital, onde
aparecem certamente em sua forma mais madura. É mérito de Rosdolsky
deixar claro o seguinte: embora o estudo dos Grundrisse
seja absolutamente necessário para entender plenamente O capital, é nesta
última obra que Marx atinge o ponto mais elevado de sua elaboração teórica. Por
isso, no original alemão, seu livro intitula-se Zur Entstehungsgeschichte des Marxshen Kapitals, ou seja, mais
ou menos literalmente, Para a história da gênese de "O Capital" de
Marx. Talvez a única crítica que se possa fazer a esta bela
edição brasileira do livro de Rosdolsky,
brilhantemente traduzido por César Benjamin, é ter adotado o título já
empregado nas edições italiana e espanhola da obra, ou seja, Gênese e estrutura
de "O Capital" de Marx, ao contrário das edições francesa e inglesa,
que mantêm o título original. O título usado na edição brasileira pode
dar a falsa impressão de que o livro é dedicado não aos Grundrisse,
mas a O capital, ou seja, não ao momento da gênese das categorias, mas ao da
sua consolidação.
É pena que uma das mais lúcidas leituras dos
Grundrisse até hoje escrita chegue à nossa língua antes de que o leitor brasileiro possa desfrutar de uma
edição em português dos próprios Grundrisse. Dispomos
já, em nosso idioma, de uma boa parte da obra de Marx, inclusive de duas boas
traduções de O capital e de uma das Teorias da mais-valia. É de se esperar que
a edição brasileira do excepcional livro de Rosdolsky seja um incentivo para que essa lacuna venha a
ser rapidamente suprida. Mas também, sobretudo, para que se tenha mais uma
ocasião de estudar Marx e de constatar assim que, sem a extraordinária produção
teórica do autor do Manifesto do Partido Comunista, não é possível entender
plenamente o nosso tempo. Afinal, vigora ainda hoje - e certamente como nunca -
o modo de produção capitalista que Marx tão argutamente analisou e combateu.
Carlos Nelson Coutinho é professor
titular da UFRJ e um dos editores de *Gramsci e o Brasil*.
Artigo originalmente publicado no Jornal do Brasil e na página Gramsci e o Brasil