Mídia e Democracia*

 

 

 

 

 

 

 

Boaventura de Sousa SANTOS**

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

É hoje evidente que o “affair Marcelo Rebelo de Sousa” não foi um acontecimento isolado. É um entre muitos sinais de uma transformação profunda nos meios de comunicação social, com implicações decisivas nas relações entre media e democracia e no jornalismo profissional. Tal transformação não é um exclusivo do nosso país, embora tenha entre nós um perfil específico. Compreende-se que entre nós, em que a imprensa escrita é fortemente dominada pelo capital nacional (privado ou público), se levantem problemas distintos daqueles que se levantam na Europa de Leste, onde a imprensa escrita é dominada por quatro empresas alemãs. Mas, nos seus contornos mais gerais, a transformação está ocorrendo globalmente, devido à revolução nas tecnologias de comunicação e informação, à desregulamentação do setor e do mercado das comunicações, à transformação da publicidade em fator decisivo de rentabilidade, à crescente concentração da propriedade dos órgãos de comunicação social, à integração do capital mediático noutros setores de produção e serviços e, finalmente, à crescente promiscuidade entre estes setores e o poder político.

Partamos de duas ideias centrais. A primeira é que os mídia desempenha duas funções básicas nas sociedades democráticas. Por um lado, uma função de vigilância em relação aos detentores de poder político, econômico e social, dando a informação que torne possível o controle democrático. Por outro lado, a função de fornecer informação crível e um espectro amplo de opiniões sobre questões importantes para o desenvolvimento da cidadania. Claro que nenhum órgão de informação pode, por si só, garantir o desempenho pleno destas funções. É o conjunto deles que o pode e deve fazer. A segunda ideia é que os padrões de organização e de propriedade da mídia afetam de modo decisivo o seu conteúdo. As transformações por que estão passando os meios ocorrem ao nível desses padrões, e são de tal modo que estão a pôr em causa o desempenho das duas funções que referi. Um dos sinais mais perturbadores é o fim iminente do jornalismo profissional tal como conhecemos. O jornalismo profissional é uma invenção do séc. XX e nasceu para garantir a credibilidade da informação (e, portanto, a fidelidade dos leitores), autonomizando-a em relação aos interesses dos proprietários públicos ou privados dos meios de comunicação. Treinados em escolas profissionais, os jornalistas aprendiam a ser partidariamente neutros e independentes de pressões comerciais. É fato que o profissionalismo viveu sempre paredes meias com os seus problemas: evitar a controvérsia, privilegiando as notícias oficiais; despolitizar as questões importantes, ao não tratá-las senão no contexto de incidentes ou escândalos; canalizar a investigação para o que é de cobertura fácil e não antagonizada ao poder. De todo o modo, a democracia, a ética do jornalista profissional permitiu-lhe autocensurar-se, mas não ser censurado.

Este tipo de profissionalismo está hoje ameaçado por um tipo alternativo: o jornalista de aluguel, privado de opinião própria, sujeito como qualquer trabalhador a receber ordens, quer para escrever, quer para eliminar conteúdos. É uma transformação violenta que, para ser combatida com eficácia, precisa ser vista não como um ataque aos jornalistas, mas como um ataque à democracia.

Medidas imediatas: quebrar os monopólios; fortalecer o serviço público; dar tratamento privilegiado à comunicação independente não comercial sob cláusula do pluralismo e da tolerância; proteger a autonomia profissional.

 

 

 

 

*  Transcrito de: Visão em 25 de Novembro de 2004.

** É Professor Catedrático aposentado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça. bsantos@fe.uc.pt

 

 

 

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