Jacques Bouveresse**
Em um tempo em que crítica à mídia tornou-se um produto apreciado até por ela própria, a obra de Bourdieu, que fornece instrumentos para compreender como se dá a dominação cultural e simbólica, suscita contra ela uma unanimidade reveladora
Para Bourdieu, a tarefa do sociólogo jamais consistiu em
se ocupar essencialmente de “aspirar o social”, mas em adquirir um conhecimento
real dos mecanismos que o governam
Cada dia que passa temos mais uma
oportunidade de observar o enorme vazio criado pela morte de Pierre Bourdieu e
de constatar o quanto se tornou arcaico o modelo
do intelectual crítico, do qual provavelmente ele terá sido o último grande
representante na França. A meu ver, o que está substituindo esse modelo foi
muito bem descrito por Jean-Claude Milner, quando escreveu em seu panfleto
Existe-t-il une vie intellectuelle en France ? (Existe uma vida intelectual na
França?): “À primeira exortação a servir, sucedeu a segunda: ‘deixem de nos
ofuscar com inúmeras provas de um saber excessivo ou de uma lucidez
desagradável’, acrescentaram os notáveis. Não basta servir, é preciso também se
mostrar humilde. Existiram retóricos para formar os doutrinários dessa
humildade do Collège de France à imprensa. Daí o intelectual de hoje,
pusilânime diante dos fortes, duro diante dos fracos, ambicioso sem projeto,
ignorante sob os ouropéis do pedantismo, impreciso de estilo minucioso, inexato
de estilo detalhista”
1
Mesmo que, como acontece quase
sempre nesse caso, provavelmente Milner tenha tendência a idealizar um pouco o
período anterior, o que diz parece basicamente certo e corresponde à chegada ao
poder de um tipo de intelectual de quem Bourdieu conhecia particularmente bem
os costumes e o comportamento, e de quem ele pressentiu e descreveu o advento.
Há pouco tempo, propus denominar “intelectual deferente” o tipo de intelectual
que evita cuidadosamente dar a impressão de saber mais ou de ter mais
consciência que outros e que não perde a oportunidade de manifestar seu
respeito por todas as formas de poder, econômicas, políticas e midiáticas,
pelas autoridades morais e religiosas, pelas crenças populares e até, se for o
caso, pelas idéias feitas.
A evolução, no período atual,
constitui uma das questões sobre as quais sempre tive oportunidade de conversar
com Bourdieu nos últimos anos. E é importante salientar que ele faz parte
justamente daqueles que se opuseram até o fim à idéia de praticar a humildade
sob a forma falaciosa que é recomendada atualmente, em outras palavras, à idéia
de fazer concessões e de aceitar o
acomodamento demandado em relação à competência e ao saber, com a esperança de
conseguir contentar o maior número possível de pessoas. Ele jamais considerou
que a tarefa do intelectual, mesmo e
sobretudo a do sociólogo, pudesse ser, como se demanda cada vez mais, hoje, de
se limitar a simplesmente retratar o social sob todos seus aspectos,
inclusive os mais inaceitáveis, evitando o máximo possível julgá-lo e formular
apreciações suscetíveis de chocar ou de ofender os atores.
Enquanto o marxismo
concentrou-se no poder econômico, Bourdieu forneceu instrumentos que permitiam
compreender melhor a dominação cultural e simbólica
Ataques virulentos
Para Bourdieu, a tarefa do
sociólogo jamais consistiu, de acordo com uma expressão utilizada pelo
orientador da tese de Elisabeth Teissier, em se ocupar essencialmente de
“aspirar o social”, inclusive, eventualmente, no que ele pode ter de mais
nauseabundo para alguém que conservou determinadas exigências morais e
intelectuais, mas em adquirir um conhecimento real dos mecanismos que o
governam, por meio de métodos que nada têm de natural e de imediato, um
conhecimento que não só é desejável, mas indispensável, para se conseguir ter
êxito em transformá-lo.
Esse aspecto do problema é
fundamental para se compreender alguns dos mais virulentos ataques enfrentados
por Bourdieu nos últimos anos de sua vida. Ele se achava em uma posição de
alguém que dá a impressão de defender uma posição cientificista e elitista
contra o que se pode chamar a democracia e a igualdade em matéria de
conhecimento e de crença. Este é o modelo do intelectual deferente adotado por
Philippe Sollers quando, em um artigo intitulado “Pelo pluralismo midiático”,
publicado no dia 18 de setembro de 1998 no Le
Monde, caracteriza nossa época como “uma época de pluralidades, incertezas,
caras sempre novas, surpresas, interseções, confrontos, singularidades
irredutíveis”, e recomenda ao intelectual aceitar a partir de então,
tratando em pé de igualdade todas as formas de contradição e de debate,
qualquer que seja sua origem e seu grau de competência e seriedade, aqueles que
expressam um ponto de vista diferente do seu.
Alain Finkielkraut expressa de
forma ainda mais clara quando sugere que, ao contrário das aparências, o que
Bourdieu ataca não é o poder abusivo das mídias, mas o que se pode chamar de “incontrolabilidade
democrática”. O que ele não aceita “não é seu reinado, e sim que outras
vozes se façam ouvir em pé de igualdade com a sua, não é o estreitamento do
espaço público, e sim sua existência”
2.
Se um intelectual
pode, enquanto tal, ser útil aos mais pobres, realmente só pode ser pelo que
ele representa e pelo que é capaz de fornecer, ou seja, o conhecimento. Mas é
suficiente?
Engajamento na ação política
Essa é uma questão sobre a qual é
particularmente necessário insistir. Desde que a mídia se tornou, aos olhos de
uma parte do próprio mundo intelectual e, de qualquer maneira, certamente dos
intelectuais mais midiáticos, a personificação do pluralismo democrático, de
acordo com o que, na realidade, é preciso compreender o relativismo e o
subjetivismo mais completo em matéria de convicção e de crença (“essa é minha
opinião, essa é minha escolha etc.”), um intelectual que se dedique a criticar
meios de comunicação, sobretudo se o faz de um ponto de vista que se apresenta
como o do conhecimento objetivo e, o que é pior, até científico, tem todas as
chances de ser acusado de se negar a participar do jogo da democracia real.
Considera-se, em geral, que com a
publicação de
Uma afirmação mais que contestável e que Bourdieu certamente não teria aceitado, uma vez que ele não acreditava que uma presença mais ativa no cenário público e o tratamento de questões como, por exemplo, a da mídia em geral e da televisão, em particular, suscetíveis de atrair mais atenção do grande público, devam custar à renúncia à atitude científica. Por mais que se possa dizer ou escrever sobre essa questão, de qualquer maneira, ele jamais pensou que a postura de militante pudesse substituir a do saber sobre as questões da ciência.
As verdades da
sociologia crítica podem perfeitamente ser interiorizadas de um modo mais ou
menos cínico sem que isso mude muita coisa no comportamento dos interessados
Pela subversão simbólica
Como diz Alain Accardo, “é (...)
submetendo-se o mais escrupulosamente possível ao dever de objetividade ditado
pela moralidade científica que o intelectual, lutando para impor simbolicamente
a verdade do mundo social, se dá as melhores chances de cumprir, ao mesmo
tempo, seu dever moral de solidariedade com os oprimidos para os quais ele leva
armas de subversão simbólica da ordem estabelecida”3.
Não mais nos últimos anos como no início, Bourdieu pensou que pudesse ter aí
uma escolha a fazer entre a pesquisa do conhecimento objetivo e os imperativos
da ação política e social. E mesmo sobre as questões que, em princípio,
interessam a todo o mundo, continuou convencido de que existe um abismo entre o
tratamento metódico, preciso e intelectual do sociólogo profissional e a
retórica e a verborréia pelas quais os intelectuais estimados pela mídia, que
lhes dá mais habitualmente a palavra, buscam a maior parte do tempo
substituí-lo. Em outras palavras, ele sempre esteve convencido de que, em
matéria de engajamento, em primeiro lugar há coisas, a saber, e a compreender,
e não só posições a tomar e protestos a fazer.
Em seu livro
Pensar com Marx, mas contra Marx
Bourdieu foi alguém que sempre se
revoltou com a miséria do mundo em todas as suas formas. De minha parte,
compartilho inteiramente do ponto de vista expresso por Gérard Noiriel em um
livro recente sobre o que se pode denominar a radicalidade do engajamento e a
violência do estilo que, segundo ele, dela resultam: “A sociologia de Bourdieu
assim como a filosofia de Foucault (...) me dão argumentos para continuar a pensar com Marx, mas contra
Marx. Dois elementos me permitem fazer a transição. Em primeiro lugar, a
violência do estilo de Bourdieu não deixava nada a desejar à dos marxistas. O
que me seduzia muito na época, pois eu estava convencido que um discurso
radical refletia necessariamente um engajamento radical. Em seguida, a
sociologia de Bourdieu ilustrava, à sua maneira, a palavra de ordem leninista
que eu tinha feito minha no início da década de 70: “somente a verdade é revolucionária”. Em outras palavras, para ser
útil aos mais pobres, basta descobrir e dizer a verdade. Mas o dispositivo que
propunha Bourdieu me parecia muito mais satisfatório que o anterior, pois ele
punha a pesquisa empírica no primeiro plano em vez de fazer discursos abstratos
sobre a luta de classes e a ciência da história. Além disso, enquanto o marxismo concentrou-se no poder econômico,
Bourdieu forneceu instrumentos que
permitiam compreender melhor a dominação, cultural e simbólica, da qual
descobri a importância no momento do conflito de Longwy. Eu dispunha, a partir
de então, de todo um arsenal de argumentos para apoiar a crítica aos
“porta-vozes” que os homens da siderurgia tinham feito publicamente” 4 .
A constatação de Noiriel poderia, acredito
ser repetida por um grande número de intelectuais de minha geração, que tiveram
com o pensamento e o trabalho de Bourdieu o mesmo tipo de relação. Sempre ouvi
Bourdieu declarar (principalmente
quando criticava o modo de pensamento e o comportamento dos discípulos de Louis
Althusser), em um tom meio gozador meio sério, que ele era o único intelectual francês realmente
marxista da época. Com isso, queria
dizer que era o único a fazer o trabalho
de análise e de pesquisa empírica sobre a realidade social que um marxista
de hoje deveria considerar obrigatório fazer.
Um melhor
conhecimento como aquele que devemos à sociologia e às ciências humanas pode
não estimular um esforço de emancipação, mas, ao contrário, levar à resignação
e ao cinismo
O conhecimento e emancipação dos oprimidos
Em que medida ele realmente
acreditava que, para ser útil aos mais pobres, bastava descobrir e revelar a
verdade sobre o mundo social? Sem dúvida, ele considerava isso uma condição
necessária, o que é compreensível uma vez que, se um intelectual pode, enquanto tal, ser útil aos mais pobres, realmente só pode ser pelo que ele
representa e pelo que é capaz de
fornecer, ou seja, o conhecimento.
Mas sobre a questão de saber se a condição necessária é também suficiente,
Bourdieu era, creio eu, ou em todo caso se tornou, ao longo dos anos mais
hesitantes. É um problema que conheço relativamente bem, porque o discuti
muitas vezes com ele e faz parte daqueles sobre os quais realmente nunca
chegamos a um acordo.
Na verdade, sempre achei um tanto
otimista a idéia de que um conhecimento e uma compreensão a mais devam produzir
necessariamente ou possam produzir freqüentemente um efeito de libertação sobre
aquele ao qual é fornecido. É uma suposição que me parece, sobretudo no período
atual, constantemente desmentida pelos fatos. As verdades da sociologia crítica
podem perfeitamente ser interiorizadas de um modo mais ou menos cínico sem que
isso mude muita coisa no comportamento dos interessados: continua-se a agir
como antes, mas sabendo as conseqüências disso e escondendo-se atrás do fato
que, do ponto de vista do próprio sociólogo, todo o mundo faz praticamente o
que estava previsto e simplesmente não o pode fazer de outra maneira.
Se a visão de Bourdieu das
relações sociais suscitou tanta hostilidade entre os membros do establishment
“é porque ela convida aqueles que a levam a sério a escolher seu lado”
Resignação e cinismo intelectual
Várias vezes Bourdieu me disse que
tinha ficado profundamente chocado com o que eu escrevera, em Rationalité et cynisme, a propósito da
maneira que um melhor conhecimento como aquele que devemos à sociologia e às
ciências humanas, em geral, pode, na verdade, não estimular um esforço de
emancipação, mas, ao contrário, levar à resignação e ao cinismo. Com toda
certeza, é chocante, mas infelizmente não é muito contestável. O uso hoje feito
de intelectuais que, em sua época, foram considerados os mais subversivos, como
Foucault, que se tornou, ao que parece, um autor de referência para alguns
pensadores do Medef (sigla de Mouvement
des Entreprises de France, organização patronal), constitui uma
interessante confirmação disso. Alain Accardo certamente tem razão de salientar
que, em todo caso, se a visão de Bourdieu das relações sociais suscitou tanta
hostilidade entre os membros do establishment
“é porque ela convida aqueles que a levam a sério a se mostrar conseqüentes e a
escolher seu lado” 5 .
Mas pode-se temer que,
infelizmente, não há nada a que o homem atual se habitue tão facilmente e que
acabe lhe parecendo tão natural como a inconseqüência. Pensar de uma maneira e
agir de outra infelizmente pode também se tornar um hábito e até mesmo
constituir o hábito moderno por excelência.
Evidentemente, pode-se também se
tranqüilizar ao dizer que, por sua vez, Bourdieu se manteve o inimigo número 1,
unanimemente reconhecido e abertamente revelado, de todos os defensores da
ordem liberal, e que seu pensamento não se submeteu durante muito tempo a um
processo de recuperação como o que assinalei. Como constata Michel Onfray, há
nesse momento uma notável unanimidade, muito reveladora e, em última análise,
muito tranqüilizadora, que se expressa contra ele. E explica: “A razão disso é
simples e evidente: Pierre Bourdieu
manifesta claramente sua luta contra o capitalismo em sua versão neoliberal
e, conseqüentemente, herda como inimigos todos aqueles que defendem essa
política, direita e esquerda juntas, ou seja, a maioria dos jornais, com
exceção de poucos, uma parcela ínfima em que se podem ler verdadeiras
homenagens, sem crítica alusiva nem perfídia expressa por um antigo discípulo,
nem reserva emitida em entrelinhas por um panfletário hábil e diplomata. Ora,
os intelectuais, pensadores, filósofos e outros atores do mundo das idéias, que
expressam nitidamente sua oposição à dominação liberal e ao futuro do planeta
integralmente submetido à lei do mercado, são pouco numerosos em uma época em
que o dinheiro como horizonte intransponível fornece o credo em torno do qual
se organizam as tomadas de posição ideológicas, nacionais e internacionais” 6.
A crítica midiática na mídia
Apesar de tudo, quando se pergunta
sobre a capacidade que os intelectuais podem ter de agir sobre o mundo e de
contribuir para transformá-lo, tem-se a obrigação de salientar imediatamente
que não há nada mais fácil e mais corrente do que acreditar no que dizem os
mais críticos e, entre eles, os mais radicais, e ao mesmo tempo abster-se de
tirar disso qualquer conseqüência. É uma questão que se coloca com uma acuidade
particular a propósito das chances de sucesso que podem ser atribuídas à
denúncia dos abusos de poder dos quais o sistema midiático se torna culpado.
Gostaríamos de poder dar razão a Bourdieu quando ele afirma que a crítica teórica e intelectual na mídia é suscetível de levar a uma tomada de consciência e, por esse caminho, a uma modificação dos comportamentos individuais e, talvez, a uma melhora das coisas. Ele explica em seu livro sobre a televisão: “Tenho a convicção (e o fato de apresentá-las em uma cadeia de televisão o testemunha) que análises como essas talvez contribuam, em parte, para mudar as coisas. Todas as ciências têm essa pretensão. Auguste Comte dizia: ‘Ciência e daí previsão, previsão e daí ação’. As ciências sociais têm direito a essa ambição assim como as outras ciências’” 7. Sou, antes de qualquer coisa, cético em relação aos resultados aos quais a sociologia crítica da mídia levou até agora. Mas a honestidade me obriga a dizer que não sei mais do que outros o que ainda pode ser eficaz contra um poder tão desmedido e tão armado e protegido como aquele em questão.
Se a visão de Bourdieu das relações
sociais suscitou tanta hostilidade entre os membros do establishment “é porque ela convida aqueles que a levam a sério a
escolher seu lado”
Sem dúvida, Michel Onfray tem razão
ao responder, àqueles que formularam contra Bourdieu a crítica grotesca de ter
sido “o mais midiático de todos os
inimigos da mídia”, que “a crítica
midiática da mídia não constitui de maneira alguma uma contradição” 8 . Ele escreve: “O que dizem os
sofistas que associam crítica da televisão à obrigação de nela não se
apresentar? Que a crítica do funcionamento da mídia se efetua somente no
deserto? Que a alternativa consiste em se render a ela para adular as potências
que convidam ou a nunca nela se apresentar a fim de preservar sua capacidade
crítica? Vejo nisso um erro de raciocínio, pois existe uma outra possibilidade:
render-se a elas e criticá-las, em seguida demonstrar a legitimidade de uma
crítica midiática da mídia” 9 .
Há nesse momento uma
notável unanimidade, muito reveladora, que se expressa contra Bourdieu, por ele
manifestar claramente sua luta contra o capitalismo em sua versão neoliberal
A eficácia dos pensadores midiáticos
Como todos os pensadores
midiáticos, Onfray simplifica demasiadamente as coisas quando suspeita a priori
da pureza de motivação dos inflexíveis (é claro que Bourdieu não pertence a
essa categoria), ao sugerir que, se eles se recusam a aparecer na televisão,
isso só pode ser porque jamais foram convidados ou porque sabem que não o
seriam facilmente10 .
Eu me pergunto se, infelizmente, ele não corre o risco de ser obrigado a
incluir na categoria dos “cenobitas leigos instalados nos cumes mais próximos
do céu das idéias em que o nada, o vazio e a ausência reinam como mestre” 11 pensadores como Jules Vuillemin
pelos quais Bourdieu tinha justamente a maior admiração e pensava que estavam
entre os raros a ter exatamente algo de substancial a dizer hoje. Se, no que
diz respeito à televisão, ao rádio e aos jornais, a “presença crítica” é, sem
dúvida, preferível a “um silêncio tão improdutivo quanto o nada” 12 , a maioria dos intelectuais
que utilizam esse argumento para justificar a resposta afirmativa que dão às
solicitações dos meios de comunicação me parecem se tornar muito rapidamente
mais presentes do que realmente críticos – algo que, em compensação, certamente
não se poderia dizer de Bourdieu. Mas não é essa a questão que quero discutir
aqui.
A questão não me parece ser
exatamente saber se podemos ou não criticar com êxito (em particular, com certo
êxito midiático) a mídia na mídia. Sem dúvida, a crítica midiática da mídia é
possível e até poderíamos dizer programada e almejada pelo próprio sistema. Mas
todo o problema é saber que chances ela tem de produzir efeitos reais e se
conseguiu até hoje, ou conseguirá amanhã, desestabilizar de alguma maneira o
poder que ela ataca e modificar, mesmo que pouco, uma evolução que parece ter
se tornado praticamente inevitável e sobre a qual ninguém, há muito tempo,
parece mais ter meios de agir.
A crítica esquecível
Christopher Lasch observa que “...
a comunicação de massa, por sua própria
natureza, reforça, a exemplo da cadeia
de montagem, a concentração do poder
e a estrutura hierárquica da sociedade industrial. Ela não atua difundindo uma ideologia
autoritária feita de patriotismo, de militarismo e de submissão como tantos
críticos de esquerda o afirmam, mas destruindo
a memória coletiva, substituindo as autoridades em que era possível confiar
por um star system de um novo gênero,
e tratando todas as idéias, todos os
programas políticos, todas as controvérsias e todos os conflitos como sujeitos igualmente dignos de
interesse do ponto de vista da atualidade, igualmente dignas de prender a atenção
dispersa do espectador e, conseqüentemente, igualmente esquecíveis e sem a
menor significação” 13
Nessas condições, não se sabe muito
bem o que poderia impedir que a crítica da mídia constituísse um assunto
midiático capaz, como qualquer outro, de manter por um momento a atenção
dispersa do leitor ou do espectador, mas ao mesmo tempo tão esquecível e tendo
todas as chances de ser tão rapidamente esquecida quanto qualquer outra.
Portanto, não é necessário ser elitista, puritano ou espírito de porco para se
colocar questões sérias sobre a eficácia de uma crítica da mídia formulada na
mídia e sobre o comportamento dos intelectuais que se orgulham de conseguirem
ser ao mesmo tempo midiáticos e críticos. Para explicar o que se passa, de
maneira alguma é necessário recorrer a uma teoria do complô ou imputar uma
perversidade especial aos atores relacionados, particularmente aos mais
poderosos.
Para Bourdieu, não há forças do mal
agindo no mundo social. Simplesmente, há
sistemas agindo no mundo social dos quais é preciso descrever a lógica ou,
para utilizar a linguagem de Bourdieu, áreas cujo funcionamento obedece a leis
que, se não são imediatamente passíveis de ser conhecidas, no entanto não têm o
menor segredo.
A desigualdade nas
condições de acesso à linguagem e ao controle das formas impostas da boa e bela
linguagem constitui um dos fatores de discriminação mais importantes
Dominação e linguagem
Do mesmo modo que Kraus, Bourdieu
não criticou os jornalistas com o objetivo de desculpar os intelectuais. Gérard
Noiriel escreve que “a crítica dos intelectuais é, sem dúvida, a pedra angular
de toda a sociologia de Bourdieu A noção de “poder simbólico” que ele elaborou
para explicar essa forma de dominação parte da idéia de que todas as relações
sociais são mediatizadas pela linguagem”
14
. Esse é um ponto de fato inteiramente crucial
Bourdieu retomou constantemente a
questão do considerável privilégio daqueles que têm os meios de atuar de uma
maneira que passa fundamentalmente pela linguagem e por sua capacidade de fazer
com que o outro aceite uma representação da realidade, que não tem necessidade
de ser objetiva para ser crível – e no entanto não o é a maior parte do tempo
–, mas que é concebida para apresentar a realidade a seu favor e servir a seus
próprios fins. O poder simbólico é, sobretudo, o poder de levar os dominados a
perceberem e descreverem as coisas como aqueles que ocupam posições dominantes
têm interesse que eles vejam e descrevam.
É o que acontece, obviamente, com
intelectuais, de quem Bourdieu pensa que sua relação com a linguagem e sua
possibilidade de criar o mundo do qual falam, simplesmente ao falarem sobre
ele, estão na origem de uma dificuldade especial que lhes torna extremamente
problemático, para não dizer impossível, o acesso à realidade propriamente
dita, e mais especialmente à realidade social. Mas é o que acontece também com
todos os produtores de discursos e, em particular, com políticos e jornalistas.
Pode-se pensar que isso realmente acontecerá cada vez mais, uma vez que
governar tornou-se hoje algo quase sinônimo de comunicar.
(Tradução.:
Wanda Caldeira Brant)
*Transcrito do Diplô edição brasileira, ano 5 número 49, Fevereiro 2004.
**Titular da cadeira de filosofia no Collège de
France. Autor de Bourdieu, savant et politique, que será lançado no dia 17 de
fevereiro de 2004 pela Editions Agone, do qual este artigo foi extraído.
notas
1 -
Jean-Claude Milner, Existe-t-il une vie intellectuelle en France? Editions
Verdier, Lagrasse, 2002, p. 24.
2 - Alain
Finkielkraut, “Sauver l'innocence et le secret ”, Le Monde, 18 de setembro de
1998.
3 - Alain Accardo, “ Un savant engagé ”, Awal, Cahiers
d’études berbères, n° 27-28, 2003.
4 - Gérard Noiriel, Penser avec, penser contre,
Itinéraire d'un historien, Editions Belin, Paris, 2003, p. 156.
5 - Op. cit., p. 18.
6 - Célébration du génie colérique, Tombeau de Pierre
Bourdieu, Editions Galilée, Paris, 2002, p. 12-13.
7 - Sur la television, suivi de L’emprise du
journalisme, Editions Raison d’Agir, 1996, p. 63.
8 - Op. cit., p. 64.
9 - Ibid., p. 64-65.
10 -
Ibid., p. 64. Ler também, de Pierre Bourdieu, “A propos d’un passage à
l’antenne ”, Le Monde diplomatique, abril de 1996.
11 -
Ibid., p. 66.
12 - Ibid.
13 -
Christopher Lasch, Culture de masse ou culture populaire ? Traduzido do inglês
(norte-americano) por Frédéric Joly, Editions Climats, Castelnau-le-Lez, 2001,
p. 56.
14 - Op. cit., p. 156.