O mercado não resolve tudo

 

 

“A globalização e suas técnicas aprofundam as desigualdades”

 

 

 

O geógrafo Milton Santos, por conta de sua ciência e das circunstâncias da vida, que o obrigaram a vagar por terras estranhas, conhece o vasto mundo, de que fala o poeta, e, como cientista, procura a solução, desprezando a rima. Está com novo livro na praça (Técnica, Espaço, Tempo - Globalização e meio técnico-científico informacional, pela Editora Hucitec) e nele debate questões vitais de nossa época.

Nesta entrevista a Cadernos do Terceiro Mundo, colabora de forma magnífica para a composição deste painel de reflexões sobre o nosso tempo. Aponta com clareza os desafios que a globalização oferece aos países em desenvolvimento. Identifica, no caso específico do Brasil, que já alcançou certo desenvolvimento relativo, um movimento de retrocesso econômico e social, combinado com a ausência de um projeto nacional.

Milton Santos acredita, porém, que um "discurso de baixo" já elabora uma vacina de sobrevivência, a partir dos danos que sofre com as novas conformações dos interesses mundializados. E confia que nem todos os homens de pensamento se renderão como tantos já fizeram.

 

Cadernos: O fenômeno conhecido como globalização caracteriza-se, como se pode depreender da leitura de seu recente livro Técnica, Espaço, Tempo - Globalização e meio técnico-cientifico informacional como o aproveitamento espacial em benefício das forças hegemônicas internacionais, não nacionais. É aceitável ou mesmo irrecusável admitir que o projeto nacional e soberania já não têm sentido?

Milton Santos: - Na verdade, o processo de globalização acentua a tendência a que as forças hegemônicas da economia, da política e da cultura escolham os lugares que consideram mais favoráveis à sua realização plena. Essas forças hegemônicas são sobretudo globais, internacionais; mas são igualmente nacionais. Isso se dá porque a grande lei da atividade econômica hegemônica é a competitividade, superlativo de concorrência, indispensável à produção do maior lucro, da maior mais-valia e instrumento de permanência das formas atuais de globalização.

 

Cadernos: Se a globalização pode ser definida como movimento de dominação econômica (consequentemente política) semelhante a ondas anteriores (imperialismo, colonialismo, etc.), embora por meios técnicos diferentes, estaria havendo apenas um aprofundamento do mecanismo de apropriação da periferia pelo centro. Assim, países que avançaram economicamente, como o Brasil, correriam o risco de retrocessos econômico-sociais, com o desmonte de estruturas que oferecessem concorrência aos interesses hegemônicos?

Milton Santos: - Não se pode dizer que a globalização é semelhante às ondas anteriores, exatamente pelo fato de que as condições técnicas de sua realização mudaram radicalmente. É somente agora que a humanidade está podendo contar com essa nova qualidade da técnica, providenciada através do que se está chamando de técnica informacional. Essa técnica, isto é, essas técnicas da informação (por enquanto) são apropriadas por alguns Estados e por algumas empresas, aprofundando assim os processos de criação de desigualdades. É assim que a periferia do sistema capitalista acaba sendo ainda mais periférica, seja porque não dispõe totalmente dos novos meios de produção, seja porque lhe escapa a possibilidade de controle. O caso do Brasil é ao mesmo tempo singular, em virtude de seu desenvolvimento relativo, e é típico, já que as atuais formas de sua inserção na globalização supõem o abandono da idéia de projeto nacional e produzem um claro retrocesso econômico e social.

 

Cadernos: O imperialismo, que caracterizou uma fase da expansão dos países industrializados, tem uma historia de ações militares para abrir mercados. A globalização transcorre, porém, de forma discreta e extremamente racional, com mortal poder de fogo de convencimento, via cátedra e mídia. A globalização dispensa a força?

Milton Santos: - Não se pode dizer que a globalização tenha abolido as ações militares. Estas, inclusive, estão por trás dos processos comerciais, sendo a própria base da convicção final dos Estados envolvidos.

A guerra se faz a partir do comércio e de suas exigências produtivas e através da informação. É neste último sentido que a pergunta procede, já que a conquista dos territórios dos Estados e dos espíritos é realizada de forma racional, mas não tão discreta. O que se dá é que as formas como a força se manifesta são outras; mas o exercício da força através da cátedra e da mídia não é menos violento.

 

Cadernos: A globalização vem coincidindo com um processo que parece contradizê-la: a formação dos blocos econômicos regionais. O centro tem seus blocos: EUA/Nafta e Europa/UE. Jaspão e China parecem a caminho de um megabloco asiático. Os EUA forçam agora todo o continente para adoção da Alca, se possível com a extinção do Mercosul. Como analisar estes dois conceitos e práticas que parecem teoricamente excludentes (globalização e blocos regionais)?

Milton Santos: - A formação dos blocos econômicos regionais não contradiz a globalização. Ao contrário, na realidade os blocos econômicos regionais são uma condição para que a globalização complete seu caminho. A verdade é que, afora a União Européia, os outros blocos regionais têm como meta essencial e quase única facilitar o comércio entre um grupo de empresas privilegiadas. Sua preocupação é o mercado e não as políticas, por isso estão despreocupadas com as questões culturais e sociais. E, no caso do Mercosul e da América Latina, a idéia de cidadania é praticamente desconhecida: tanto a idéia de cidadania ligada a cada Estado Nação, quanto a idéia de cidadania mundial. Desse modo, a forma como se desenvolvem atualmente os blocos econômicos regionais favorece a expansão e o fortalecimento do chamado mercado global e não a criação e o fortalecimento de uma comunidade humana universal.

 

Cadernos: Em recente programa (Roda Viva, da TV Cultura de S. Paulo, 31/03/94), o Senhor considerou fraco o papel dos intelectuais na formulação do Brasil. Ainda são efeitos do regime militar? A universidade perdeu sua força de criação e contestação? A redemocratização cooptou os intelectuais para tarefas (esterilizantes) da burocracia? O pensamento que se destaca é o da adequação dos tempos da globalização?

Milton Santos: - A fragilidade do papel dos intelectuais durante o regime militar e a atual fragilidade desses mesmos intelectuais frente ao processo brasileiro de globalização têm ambas relação com a natureza desses períodos históricos. Nos dois casos, o convite era para a adesão a um pensamento único. Na primeira situação, isto se dava mediante o uso da força ou a promessa de uso da força para calar os dissidentes, enquanto agora o silêncio ou quase-silêncio resulta de uma cooptação mais ou menos voluntária. Mas é agradável constatar que, ainda sob circunstâncias hostis, o Brasil atual assiste a manifestações brilhantes de intelectuais genuínos. O peso da burocracia que se abateu sobre as universidades constitui um convite ao pensamento técnico e burocratizado, desencorajando as manifestações propriamente intelectuais. É urgente reverter essa tendência, mas isso é apenas possível através de uma vontade firme de análise dos processos que estamos vivendo, antes de embarcar numa discussão puramente retórica e falsamente oposicionista, cada vez que utilizamos os mesmos parâmetros oferecidos pelo discurso da globalização.

 

Cadernos: A pregação da globalização ( privatização, desnacionalização, tecnificação) ignora urgências do dia a dia, como a imensa crise social que nossa urbanização experimenta especialmente nas maiores cidades. O desemprego é considerado como uma fatalidade decorrente do despreparo do trabalhador, por exemplo. Esta é uma situação sustentável? O social passará a ser apenas um subproduto eventual das novas realidades?

Milton Santos: - A resposta é não. Por enquanto, no caso do Brasil, a questão do emprego não tem merecido tratamento sério. Pode-se, entretanto, admitir que em pouco tempo esse problema mereça outro cuidado, saindo da sua atual situação residual para se tornar uma questão política, diante da emergência de um impasse social.

 

Cadernos: O proposto Estado mínimo, associado à pregada força conformadora do mercado, será capaz de responder às imensas necessidades brasileiras de desenvolvimento?

Milton Santos: - A resposta é não.

 

Cadernos: Em seu livro acima citado, o Senhor afirma em algumas passagens sua crença e esperança de que o local, o regional, atue como uma força capaz de enfrentar a desculturação que parece estar no cerne do movimento global e de sua agilíssima informação proveniente e conformada aos interesses hegemônicos. (“A novela Á indomada”, da rede Globo, já transcorre parcialmente em inglês – talvez seja um pequeno sintoma). O país/sociedade em construção, que é o Brasil, oferece elementos para se contrapor/deglutir a onda?

 Milton Santos: - O lugar recria cultura, ele o faz a partir de um cotidiano vivido de modo distinto, mas coletivamente, por todos. Este cotidiano é um reflexo das condições de cada lugar e tem suas raízes fincadas no trabalho em todas as suas modalidades. É nesse sentido que o cotidiano territorializado ganha um papel novo, isto é, atribui às comunidades a possibilidade de se reverem e se redefinirem face à globalização, ampliando os horizontes da sua consciência, impondo novas visões de mundo, de cada país, de cada lugar ou região, e se transformando, assim, numa força política incontornável. No caso brasileiro, é o território com todos os seus lugares, mas, sobretudo por suas grandes cidades, que revela a profunda crise da nação e o mal-estar que o processo de globalização está criando em toda parte. Esta descoberta já vem sendo feita por numerosos atores sociais e esta mensagem está se difundindo com grande rapidez. E dessa maneira é que se está produzindo um formidável "discurso de baixo", que contraria o "discurso de cima", isto é, o famoso discurso único, produzindo-se assim a semente da força com a qual o Brasil já começa a enfrentar e recusar a atual globalização perversa.

 

Transcrito da Revista Cadernos do Terceiro Mundo Ano 57 / Junho/Julho de 1994  - nº. 200

 

 

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