Denise Stoklos & Milton Santos

 

 

 

Milton Santos - Quando é que você formulou essa idéia de que o Brasil tem de ser repensado de forma autônoma?

Denise Stoklos - Eu tive sorte de ter 18 anos em 68, de estar na universidade naquela época. Nunca fui líder estudantil, nunca fui presa, torturada ou exilada por imposição. Mas convivi com colegas que tinham liderança e com os quais eu entendi que não era possível pensar o Brasil de uma forma macro, porque tudo naquela época era tão difícil, pequeno e limitado. E isso me acompanhou por todo o tempo, desde que sai da universidade e comecei minha vida teatral, vindo para São Paulo e Rio. Quando comecei a ser vista como uma boa atriz na juventude, o único caminho era tornar-me intérprete de novela de sucesso. Não havia possibilidade de encontrar companhias ou grupos que desenvolvessem uma linguagem própria, o medo era grande...

Santos - ...Era a manifestação da cultura própria dificultada pela emergência da indústria cultural...

Stoklos - ...Exatamente. Repetir a indústria cultural era o único desenvolvimento aceito, apropriado a qualquer ator, diretor ou autor que quisesse continuar aqui. Era muito insatisfatório para mim, que escrevi minha primeira peça aos 18 anos, sobre o tema da mais-valia. E não poderia escrever sobre outra coisa: aquilo era fruto da minha geração, não da minha autoria.

Santos - Quer dizer, era a vontade de afirmação da cultura nacional como afirmação do povo brasileiro. Talvez esses 500 anos pudessem ser úteis para isso...

Stoklos - ...Ou pelo menos que a gente não pudesse passar por isso tudo de novo...

Santos - É curioso. Penso que nas ciências humanas temos o mesmo problema. A diferença é que eu levei meio século para descobrir isso, e você descobriu mais rapidamente... A maneira como interpretamos o Brasil e o mundo é empobrecida na universidade porque somos extremamente copiadores -primeiro da Europa e agora dos EUA. Não se trata de recusar o pensamento que vem de outros países, mas há uma maneira própria de ver o mundo e a si mesmo. É isso que distingue as culturas e dá nervo aos povos. Nós não chegamos a ser universais porque não somos suficientemente brasileiros. Relendo suas peças, encontrei esse ponto que nos aproxima, que é retirar do país as suas próprias forças para entender o mundo e melhorar o Brasil. Estamos atravessando uma fase de desmanche de muita coisa. Isso nos deixa preocupados e, ao mesmo tempo, nos dá força para enfrentar a tarefa.

Stoklos - Quando li pela primeira vez o seu livro "A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção" (ed. Hucitec, 1996), tentei captar o seu raciocínio de geógrafo e descobri verdadeiras epifanias. Por isso que eu cito tanto o seu pensamento, mesmo com receio de fazer uma interpretação errada ou superficial da sua obra. O senhor proporciona ao mesmo tempo o rigor do pensamento e o convite à análise crítica. Acho muito interessante, por exemplo, quando o sr. diz que não estamos vivendo uma época da comunicação, como se apregoa por aí, porque comunicação é emoção.

Santos - Esse aspecto mostra também a diferença entre o artista e o homem da universidade na direção da verdade. O grande artista é livre e sabe que, se não houver emoção, ele não se aproxima da verdade. E o homem da universidade imagina que tem de reprimir a emoção para produzir. As ciências humanas, brasileiras e latino-americanas, acabam não interpretando os respectivos países porque olhamos para a interpretação que é dada a outra história. Como está claro no seu texto "500 Anos - Um Fax de Denise Stoklos para Colombo" (1982), por exemplo, a troca do espelhinho pelo ouro. Quer dizer, a gente busca se espelhar apenas e toma isso como se fosse uma riqueza intelectual. Seu trabalho no palco é uma cruzada. Minha impressão é que ele repercute algo que é profundo na alma brasileira e está buscando intérpretes... A cultura tem de vir com o território, com o povo, com a história se fazendo.... É um conjunto que inclui possivelmente essa preguiça intelectual, essa comodidade de pegar os  espelhos e usá-los adequadamente.

Stoklos - E a gente raspa, assim, as palavras suas... Pega aquilo e se agarra como se fosse uma bóia no naufrágio. Quantas vezes um simples pensamento nos conduz a praias mais iluminadas... Volto ao seu pensamento da emoção, de que o pobre, o destituído, ele se comunica por causa da emoção, por estar com a emoção... Eu não fui instruída para trabalhar com isso. Era complicado lidar com a emoção, principalmente porque vivíamos uma época difícil. As coisas nesse país têm a aparência e o significado fica por baixo, que é muito mais forte. Só que as coisas não mudaram, mesmo com essa chamada democracia legitimada pelo voto, que não significa nada. É pior, porque traz o fantasma desse "legítimo"...

Santos - ...É um consumo eleitoral...

Stoklos - ...Esse distanciamento entre a emoção e a leitura do real também nos criou uma dificuldade para se aproximar da nossa própria emoção. Houve essas pequenas sequelas, mas dá para reajustar. É a emoção, afinal, que está determinando que a gente não queira desistir e se entregar ao cinismo que todos os convertidos ao neoliberalismo assumiram, de que "é assim mesmo", "é mais um passo", "estamos evoluindo", "esse é o movimento global", "as novas leis são assim mesmo", enfim, é um cinismo absoluto. Não tem graça não ser cidadã, não ter compaixão, não ter reverência, enfim, tudo que nos é dado como único patrimônio, único no sentido de bom, de uno, não de pouco, de menos. E seu trabalho, professor, também nos pede essa emoção.

Santos - Aliás, foi uma descoberta recente. A maior parte do tempo eu era refreado. Recordo-me dos anos em que ensinei na França e nos EUA, entre as décadas de 60 e 70, e a minha volta ao Brasil, quando retomei contato com as pessoas daqui. Fui intelectual na Europa e nos EUA sem ser cidadão, era regido pela razão, pelo esquema. A descoberta dessa nova condição, dessa epistemologia da existência, como estou chamando agora. Quer dizer, o existir como condição para ver o mundo, e isso inclui, em primeiro lugar, a emoção. Porque a razão reduz a força de descobrir, porque só a emoção nos leva a ser originais. Não só a emoção, claro, mas por meio dela é mais depressa. Propor uma coisa nova na universidade é muito difícil, embora seja o lugar da proposição do novo. Essa força, digamos, de esquecer, de ser original, só a emoção permite. E ela então passa a ser um dado do pensamento, não é a razão que produz o grande pensamento. E aí é preciso caráter. Uma reinterpretação da sociedade brasileira em movimento permite ver, digamos, uma outra coisa, um futuro mais perto. Nós fomos tratados e educados para examinar o chamado presente, não imaginando que o futuro está aí, embutido no presente. Na realidade, cada ato nosso é presente, agimos em função do futuro. A ação é presente, mas a aspiração dela é o futuro.

Stoklos - O educador Paulo Freire já falava disso: só tem futuro quem tem presente. Essas pessoas são mutantes. Não estou falando daqueles que queimam índios ou dos chamados "mauricinhos", "patricinhas", que são apenas uma reprodução dos modelos que se conhece. Mas estou falando dos novos, que têm compaixão... Num país como o nosso, quem não tem compaixão está morto, literalmente.

Folha - Essa aceleração do presente, da qual o sr. fala, ficou muito clara no final do ano passado, com a ansiedade em torno da chegada do novo milênio.

Santos - O que chamamos de presente não existe. É um momento fugaz da realização de um futuro sonhado. O melhor gesto seu é baseado no futuro, não no presente. Então, acho que a primeira condição para a gente acreditar que o mundo vai mudar é descobrir que o presente não existe. Hoje já tem cartão de crédito para os menos pobres. Mas na minha juventude, nem dinheiro para comer tínhamos. Agora, a classe média "refabrica" o futuro com cartão de crédito, com inadimplências. O pobre não, ele tem pouco. Ele sabe que amanhã não será igual a hoje. E isso está chegando, está subindo até a gente também. O drama dos filhos sem perspectiva, o drama de quem quer se educar e não consegue.

 

Stoklos - Mas essa aceleração é dramática...

Santos - ...É dramática sim. Por isso, o papel de gente como eu, você e muitos outros -somos um certo número de pessoas que não nos conhecemos-, volta a ser central.

Folha - No ano passado, o sr. participou de um seminário do movimento "Arte contra a Barbárie", organizado em São Paulo por grupos como o Tapa, Folias D'Arte e Companhia do Latão. Como foi a experiência de conversar com a classe teatral?

Santos - Eu sentia falta desse contato com os artistas. Afinal, teoricamente eles são livres. Quer dizer, podem não ser na prática (risos). Bem, eu coloquei para eles um pouco do que estamos falando aqui. O que já não acontece com os colegas da universidade, pois estamos mais propensos à censura. A universidade possui uma estrutura de enquadramento que isola.

Stoklos - No solo, por exemplo, você não está sozinho no palco. No meu caso, não se trata de um monólogo de ficção no qual você vai lá e representa exatamente, e é aquilo. O espectador vai dizer: "Oh, que virtuosismo, como faz bem!". E vai embora como entrou. Aliás, para ir embora exatamente igual, nenhuma experiência de encontro vale a pena. O verdadeiro encontro é quando você se transforma. Talvez por isso nossa sociedade se prove tão injusta, porque a gente não se transforma ao encontrar o outro.

Santos - Quando fui trabalhar nos EUA, eu achava que tudo era espontâneo, até descobrir que a informalidade americana é absolutamente regulável. E faltava aquilo que tinha na França, que é jantar a quatro, a seis. Isso estimula você a falar, a dizer o que pensa. Foi aí que senti a diferença entre o encontro e o parto. Quando retornei ao Brasil, vi que tinha acabado também essa coisa da entrega do tempo como vida ao outro. O que talvez não aconteça com as pessoas pobres, senão elas deixariam de viver...

Stoklos - ...Elas só têm a própria presença...

Santos - ...E a do vizinho. Quando não existe a possibilidade do conflito criador e enriquecedor, quando não querem falar um com o outro, aí você é usado para falar pelos outros... Aliás, como é a competição no meio artístico?

Stoklos - Eu tenho a sorte de não entrar nesses embates. Escolhi um caminho isolado, tenho consciência disso. Faço questão de falar, para quem chega perto de mim, que isso não faz parte do ofício do artista.

Folha - Como o Sr. vê a representação no teatro?

Santos - A minha educação artística é muito pobre. Ainda não me sentei para fazer a exegese dessa pobreza. O teatro constitui, vamos dizer assim, por destino, uma exposição de idéias universais. Acho que esse é o teatro genuíno. É daí que vem, consequentemente, a sua postura crítica. E foi assim durante séculos, a busca de coisas que são próprias do homem, essa fome de aperfeiçoamento. O teatro é ético, em suma.

 

Milton Santos - O geógrafo Milton Santos é dos pensadores brasileiros mais respeitados em sua área. Em 94, ele recebeu o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, na França, uma espécie de Nobel da Geografia. Santos exerceu boa parte da carreira acadêmica no exterior (França, Canadá, EUA, Peru, Venezuela etc.). Atualmente, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Santos publicou mais de 40 livros e 300 artigos em revistas especializadas. Entre os volumes publicados estão "Pensando o Espaço do Homem" (1982), "A Urbanização Brasileira" (1993) e "A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção" (1996), todos lançados pela editora paulista Hucitec. Santos é colaborador da Folha, em que escreve regularmente na seção "Brasil 500 d.C." do Mais!. Em sua opinião, só é possível fomentar o caráter na solidão. "Como consultar o outro para dizer o que você pensa?", questiona. Cita o poeta francês Victor Hugo como que para justificar a modéstia intelectual. "Ele dizia que o grande artista surge no ápice. Cada grande artista está no ápice, não importa a época, como Shakespeare e Ésquilo."

 

Denise Stoklos - Paranaense de Irati, Denise Stoklos soma 32 anos de carreira, na condição de autora, diretora e atriz. Seu nome está associado ao "teatro essencial", como denomina a linguagem que criou baseada "numa possibilidade cultural brasileira original, única". Corpo, voz e mente/intuição formam o tripé do trabalho. A atriz defende um "teatro que tenha o mínimo possível de efeitos e que contenha a máxima teatralidade em si própria”. Quando começou a ganhar projeção, no início da década de 80, seus espetáculos eram calcados, sobretudo na mímica. São dessa fase, por exemplo, "Elis Regina" (1982) e "Mary Stuart" (1987). Aos poucos, gestos e movimentos incorporaram o verbo como signo complementar. Solos como "500 Anos - Um Fax de Denise Stoklos para Cristóvão Colombo" (1992, sobre o descobrimento da América), e "Des-Medéia" (1994) consolidaram o caminho de projeto iminentemente autoral. "Meu teatro é o jogo, é o brincar. O espectador brinca comigo ao concluir comigo, mas não brinca de que está vendo uma ficção. Acho que é uma coisa meio xamanística, no sentido do pajé de tribo que fica encarregado de chamar para o encontro a cada noite", afirma.

 

Transcrito de: Folha de São Paulo, 7 de março de 2000.

Jornalista: Valmir Santos, caderno: Ilustrada - Página 5-1.

 

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