A (do)mistificação da Geografia*

 

 

 

 

Zeno Soares Crocetti

 

 

 

 

"Eu pensava ter dado um grande salto para  frente
e percebo que na verdade apenas ensaiei os tímidos
primeiros passos de uma longa marcha..."

(do filme A Chinesa, de Godard)

 

 

 

Por que a Geografia é tratada como um conhecimento inútil? Em 1957, Delgado de Carvalho já denunciava: o principal problema da Geografia é o Geógrafo. Alheio à realidade, este trabalha uma Geografia como um amontoado de conhecimentos para decorar, enumerar nomes e curiosidades, tomando sua disciplina irritante, onde os alunos repelem e memorizam apenas em véspera de exames.

Com isso não consegue sair da crise em que está inserida, não consegue fazer o aluno entender o mundo atual, quanto mais transformá-lo, pois seus valores educacionais estão a serviço da classe dominante, que, utilizando-se dos princípios da igualdade e da liberdade, impõem, imprimem a ideologia dominante. Por isso leva professor e alunos a se distanciarem, perdendo o elo principal da educação (ação pedagógica), a relação professor/aluno, anulando o momento da produção do conhecimento, a sala de aula.

Os cursos de Geografia no Brasil (resultantes desse modelo) vivem hoje um quadro que aponta perspectivas cada vez mais cruciais para os estudantes da área.

Em quase todas as escolas do país, é patente o processo de esvaziamento, quando uni número significativo de vagas oferecidas no vestibular ficam ociosas, sendo que do contingente de estudantes aprovados, grande parte abandona a universidade antes de concluir o ciclo básico.

0 momento de crise vivido hoje pela sociedade brasileira, oferece a oportunidade para uma reflexão sobre os valores e as atitudes a serena tomadas diante dos desafios que surgem. No caso da Geografia e do Geógrafo, o fato se projeta e ganha proporções que levam os responsáveis por este ramo do conhecimento a fazer reflexões tanto sobre a atuação que podem desenvolver como também sobre a própria natureza do conhecimento científico em que se especializaram.

 

 

A GÊNESE DA CRISE

Desde Heródoto que a Geografia é uma atividade de observação, de puro levantamento de dados. Mais tarde, com Kant, a Geografia transformou-se numa espécie de síntese de todas as ciências, pois, para esse teórico, havia duas classes de ciências: as especulativas apoiadas na razão, e as empíricas, apoiadas na observação e nas sensações. Desse modo, haveria duas disciplinas de síntese: a Antropologia, síntese dos conhecimentos relativos ao homem, e a Geografia, síntese dos conhecimentos sobre a natureza.

Assim, a tradição Kantiana colocou a Geografia como uma ciência de síntese – que trabalha com dados de todas as demais ciências –, descritiva (que enumera e acumula dados), e que visa abranger uma visão de conjunto do planeta, fundamentada no método de coleta, sempre no sentido descritivo.

Nos fins do século XIX, à Geografia cumpriria, então, seu objetivo de distinguir claramente o que é obra do homem; do que é obra da natureza. Essa novidade se inicia com a obra Cosmos, de Humboldt, carregada de fundamentos oriundos da Estética: o primeiro capítulo intitula-se "Dos graus de prazer que a contemplação da natureza pode oferecer".

Ainda dentro desta visão tradicional, a Geografia ganha uma nova proposta: a Geografia Regional, tendo como objeto de estudo, uma unidade espacial, a região (uma porção determinada do espaço terrestre de dimensão variável), passível de ser individualizada, em função de um caráter próprio.

 

 

O PAPEL DO GEÓGRAFO

Ao geógrafo cabia situar o homem na paisagem e distinguir, ao longo do tempo, como se modificavam as suas relações com a natureza. Dessa forma, o geógrafo vê os fenômenos dentro de um ângulo que lhe permita situar os elementos e componentes do espaço como um todo. Esse conceito congelado escondia, porém, o essencial, que é a ação do homem no espaço. Não basta constatar a presença do homem, é preciso explicá-la.

 

 

A ORDEM DO DISCURSO

Mas, para explicar a presença do homem, há que se utilizar de instrumentos que são politicamente condicionados. Daí a falsidade de que a Geografia está vinculada com a realidade desde sua origem. Essa mentira assume importante papel ao longo da história, desde aqueles ligados ao determinismo até à nossa época, que admite a existência de uma sociedade sem classes no período mais agudo da crise do capitalismo.

 

 

A LUZ NO FIM DA CAVERNA...

A crise atual da Geografia reside na divisão entre a Geografia física, que está ligada às ciências da natureza; e a Geografia humana, ligada às ciências da sociedade. Para superar esse impasse epistemológico, a Geografia desdobrou-se. No entanto, ela continua operando por síntese e deu conta de alguns problemas. Essa dicotomia assume as mais sérias proporções quando se trata da parte humana. Nesse campo, fica muito claro o predomínio das idéias da classe que detém o poder. Desse modo, ela omite sua essência, incorporando seu caráter ideológico que invalida suas teses.

Portanto, ser Geógrafo é explicar, de acordo com o problema concreto apresentado, através da utilização adequada de seus métodos e técnicas, os significados que a realidade apresenta, tornando a sociedade consciente de suas necessidades.

 

 

O FIM DA LINHA

Nossas fábricas do saber (universidades), dentro do seu caráter de guetos auto-referidas, inteiramente fracionadas por divisões políticas e desavenças pessoais, mostrando o sinal dos tempos... Tem hoje um papel determinante: criar incompetentes sociais e políticos, realizar com a cultura o que a empresa realiza com o trabalho, isto é, parcelar, fragmentar, limitar o conhecimento e impedir o pensamento, de modo a bloquear toda tentativa concreta de decisão, controle e participação, tanto no plano de produção material quanto no da produção intelectual. Em lugar de criar elite dirigente, está destinada a adestrar mão-de-obra dócil para um mercado sempre incerto.

Como a maioria absoluta dos formandos de Geografia se dedica ao ensino Básico, o professor de ensino médio, mal pago explorado, humilhado, só agora começa a tomar consciência da importância dos seus serviços e passa a cobrar da sociedade maior atenção a sua atuação, à importância do seu trabalho como formador de gerações futuras.

 

 

EPÍLOGO

A Geografia descritiva é incapaz de dar conta de analisar o homem enquanto ser social, que vive dentro de uma sociedade dividida em classes. O espaço geográfico não é humano porque o homem o habita, mas porque é produto, condição e meio de toda atividade humana.

Da relação do honrem com a natureza, surgiram necessidades, da satisfação das necessidades surgiu o espaço social, fruto do trabalho ao longo do processo histórico. Na medida em que a sociedade produz e reproduz sua existência, ela vai deixando as marcas de sua história; dessa maneira a história assume papel dinâmico e direcionará o processo de produção espacial.

A sociedade não é à base da história, mas é produto das relações de um momento histórico, entre a sociedade e o meio circulante, fundamentado na acumulação técnico-cultural. Cada momento histórico produz um modo de vida e uma estrutura espacial correspondentes.

Em resumo, saber não é o bastante, é preciso compreender.

 

"Caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao andar.”

(Antonio Machado, poeta espanhol.)

 

* Publicado no Jornal Vapt Vupt, Curitiba, Ano 1, nº. 0, dezembro de 1991, p. 3.

 

 

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Manuel Correia. Caminhos e descaminhos da Geografia. Campinas: Papirus, 1989.

MORAES, Antonio Carlos R. Geografia, pequena história crítica. São Paulo: Hucitec, 3ª edição, 1984.

MOREIRA, Ruy. O que é Geografia. São Paulo: Brasiliense, 4ª edição, 1985.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. Para onde vai o ensino da Geografia. São Paulo: Contexto, 1989.

SANTOS, Milton. Por uma Geografia nova. São Paulo: Hucitec, 2ª edição, 1980.

SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução à Geografia (geografia e ideologia). Petrópolis: Vozes, 2ª edição, 1977.

 

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